O homem que quis matar o tempo

Pouco haverá a fazer: vivemos todos, sem excepção, sob o domínio de Cronos, o Deus-Tempo. O velho Cronos é o mais igualitário dos deuses. Não é esquisito e exerce a sua autoridade, mais ou menos rigorosa, sem olhar a origem social ou geográfica, bens materiais ou qualidades morais. Nada nem ninguém lhe escapa e o que podemos fazer é conservar o que amamos e nos faz a vida melhor e passá-lo a outros para que o perpetuem como possam – a única ilusão que ainda o mistifica.

Tudo se torna ainda mais irónico porque Cronos é uma invenção nossa. Criámo-lo para dar nomes aos dias, para sabermos identificar saídas ou grades. E assim o fazemos, reconhecendo angústias, alegrias e dificuldades. A nossa reacção ao fim que nos é comum também dele deriva: quando alguém parte ainda jovem surpreendemo-nos e choramos mais a perda. “Foi antes do tempo”, lamentamos. Mas que tempo é este? Qual o tempo ideal para se ser, para viver? Ninguém o sabe nem nunca o saberá porque Cronos é flexível, veste cada um de nós de forma diferente e oferece-nos a nossa sentença irreversível de modo desigual e personalizado.

Por esta e outras razões não consigo imaginar nada tão poético e ao mesmo tempo tão utópico como querer matar o tempo, literalmente. A expressão que utilizamos é falsa porque considera o tempo associado a uma actividade; “mataríamos” o tempo pela negação dessa actividade por outra.

Há pouco tempo – cá está – contaram-me a história de Martial Bourdin, um anarquista francês do século XIX. Até aqui, nada de extraordinário, nem mesmo o seu fim trágico, comum a outros como ele por toda a Europa: terá morrido quando os químicos explosivos que transportava para um atentado explodiram prematuramente. Morreu 30 minutos depois da detonação, sem nunca ter revelado o objectivo do atentado. Mas sabemos que Bourdin se dirigia para o Real Observatório de Greenwich, em Londres – lugar onde, desde 1852, se encontra o relógio que determina o chamado Greenwich Mean Time (GMT). A ideia de que este relógio tenha sido o verdadeiro alvo de Bordin é demasiado boa para ser descartada. E é possível: em 1880 o governo britânico declarou que a hora oficial do país seria determinada a partir do GMT – o que, na óptica de um anarquista libertário, seria mais uma prova inaceitável do controlo do governo sobre os cidadãos. Fazer o relógio ir pelos ares seria assim um acto com um fortíssimo simbolismo. O grande escritor Joseph Conrad aproveitou de resto a história de Bourdin para a incluir num dos seus últimos romances, The Secret Agent (1907).

Esta história fascinou-me. Deploro o uso de violência como forma de luta e legitimação política e ideológica, sem excepção; prefiro ficar assim com a ideia de que Bourdin quis matar o tempo, numa tentativa desesperada mas urgente, e dar vida àquelas palavras do Henry IV, de Shakespeare e que já várias vezes por aqui apareceram: “: “But thoughts the slave of life, and life, Time’s fool, /And Time, that takes survey of all the world,/
Must have a stop.”
Escravos de Cronos, sabemos que estamos condenados. Mas como Bourdin façamos com que isso seja uma injustiça.

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