A memória de Yokohama – II

Lembrava-se de ter levado a mulher para as imediações da falésia de xisto escuro. Lembrava-se de descer de jipe até às águas escurecidas da barragem. lembrava-se de ver a silhueta da imensa calote esférica perdida entre arames farpados, vigias e um rebordo infindável de amieiros e pinheiros mansos. Laurentino lembrava-se que havia festa e fogo de artifício na aldeia e que a banda tocava música cigana húngara sob sombras avermelhadas de poeira.

Laurentino lembrava-se de ter levado a mulher para dentro do átrio onde se erguia o antigo armazém da fundição. Laurentino lembrava-se de ter passado a correr com a mulher pelo cedro libanês que tinha ramos de bruxa e pela alfarrobeira imobilizada num repto da natureza. Laurentino lembrava-se de que tinham os dois passado pelas ruínas da vagoneta e do torno, para depois entrarem finalmente no armazém. O portão deslizou sobre carris negros e ouviu-se um som metálico e seco, um bramido pálido e oco. A mulher sentou-se no chão a um canto e tentou respirar fundo. Chorou depois compulsivamente e apenas dizia e repetia: “Eu sei coisas a mais. Eu sei coisas a mais. Eles vão matar-me. Ou uns ou outros. Ou uns ou os outros”.

Lembrava-se de ter saído até ao cais, enquanto a mulher dormia no interior de um vestíbulo abandonado da fundição como se estivesse calafetada e defendida pela escuridão. Laurentino lembrava-se de ver dois carros pretos a estacionarem ao pé do cais de onde saíram vários homens de cabelo rapado que telecomunicavam entre si. A banda tocava com vivacidade meteórica e os chapéus dos músicos pareciam tendas de linho expostas à poeira avermelhada do Negueve. A pequena multidão acercava-se das barracas de comes e bebes, dos cachorros de peluche, dos ursos de focinho branco, dos palhaços ruidosos, das tendas de tiro, das tabernas improvisadas e do homem-estátua que mais parecia um bobo convulsivo esboroado em aguarela ocre e azulada. E, nessa altura, mais por intuição do que por temor, Laurentino regressou subitamente à fundição atravessando um caminho secreto e remoto que conhecia do tempo das brincadeiras de criança.

Tudo havia sido preparado.

Lembrava-se, por fim, de ter colocado a mulher dentro de um tapete turco. Por cima do rolo improvisado, encheu o jipe de latas, restos de cadeiras, dossiês comidos pelo bicho, hastes de candeeiro, jarros, molduras de fotografia, zincogravuras, cortinados, roldanas, ferramentas carregadas de ácido e um ou outro varão de cobre. Vestiu um fato de macaco a cheirar a podre e saiu da aldeia em direcção às alturas.

Lembrava-se agora de circundar mais uma vez estas estradas muito íngremes. Levava o coração a ribombar, a tremer e revia assim a vertigem dos vales fendidos pela corrosão dos glaciares. Por trás, nada. Nem viatura, nem vivalma, nem sinal de perseguição. A fuga parecia perfeita. A mulher mal conseguia respirar e o tempo passava, lento e perigoso, como leme de veleiro no meio de súbita tempestade. Laurentino lembrava-se de ter andado quatro dias e quatro noites sem parar, a não ser para comprar gasóleo, água e bolachas de água e sal. E foi já num país que parecia Espanha, num descampado tipo aragonês, que Laurentino se lembra de ter livrado o carro de tanta porcaria.

A mulher, completamente tonta e inundada por ansiolíticos, sentou-se a seu lado e não disse água vai água vem durante várias horas.

Lembrava-se de ter chegado a uma terra cheia de praias onde não havia mais estradas por onde seguir para poente. Apenas o mar e nada mais. Uma terra de fins onde quase toda a gente se conhecia. Uma terra de toldos brancos, uma terra de linhas de comboio entre canaviais e marquises de alumínio, uma terra de areais e alicerces esventrados e balaustradas opulentas entre bustos de leão em cerâmica clara. Uma bela terra cheia de fadários e oliveiras. E ao fim dessa longa tarde, por fim, entrou no hotel que era uma dourada Fortaleza no Guincho. O hotel mais ocidental da Europa. E cada um dormiu onze horas bem contadas.

Lembrava-se de ter acordado às duas da tarde desse décimo primeiro dia de Junho. Quando regressou ao quarto, já a mulher tinha saído do longo banho de imersão. E foi nessa altura que ela, com a toalha em jeito de turbante na cabeça, premiu o botão da televisão. Segundos depois, não mais do que isso, a programação normal era interrompida e as imagens mostravam a imensa bola de fogo que irrompia pelos vales e falésias de xisto escuro onde Laurentino tinha nascido.

“Tudo leva a crer que um ataque terrorista fez explodir a maior central nuclear da Europa”, dizia-se na televisão com voz pouco convicta. Quase ao mesmo tempo, Laurentino abriu a vidraça das janelas e viu a polícia especial por todo o lado. Pareciam astronautas munidos de bastões eléctricos e viseiras violetas escuras. Avançavam pelas escarpas ou pela falésia que desce sobre o mar em plano inclinado, cercavam as dunas e as duas praias. Entravam nas varandas e subiam já ao terraço. As sirenes dispararam por todo o lado e, sem que nada o fizesse prever, envolveram a tranquilíssima fortaleza do Guincho.

Ouviu-se nessa altura um disparo e Laurentino não se lembra de mais nada.

(continua)

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