Estado Olímpico

Foram quatro medalhas – quatro – as que assinalaram a mais brilhante participação nuns Jogos Olímpicos jamais registada na História de Portugal, como observaram, ufanas e impantes, as autoridades competentes. Ou talvez não tão competentes como isso: na realidade, foram raros os países da Europa a conseguir piores resultados em Tóquio 2020, ou 21, que no caso vai dar ao mesmo: São Marino só conseguiu três, Finlândia, Estónia, Letónia e Kosovo ficaram pelas duas (mas os dois primeiros casos são de excepção em relação aos resultados do passado), enquanto Lituânia, Moldávia e Macedónia só trouxeram do Japão uma medalha cada um. Já a Holanda, só para dar o exemplo de um país que nem sequer é exactamente uma potência do desporto mundial, tem menos de metade do tamanho de Portugal e menos do dobro da população (17 milhões de pessoas), conquistou nove vezes mais medalhas (36).

Não serão os atletas os responsáveis por estes fracos resultados: Pichardo, Mamona, Fonseca ou Pimenta – e as respectivas equipas técnicas, naturalmente – mostraram que é possível preparar, competir, disputar as vitórias uma a uma, conquistar provas de exigência máxima. O mesmo também se aplica, aliás, a quem não trouxe medalhas mas construiu durante anos o percurso para lá chegar, a superação das provas de qualificação, a persistência, a capacidade para conseguir um lugar nesses palcos que durante dias concentram os holofotes e os olhares de grande parte da população do planeta. Não foi nas suas provas, no salto mais ou menos conseguido, no lançamento mais ou menos perfeito, na aceleração mais ou menos perfeita, no golo que se marcou, deixou de marcar ou sofreu, que esteve o problema: o problema está onde sempre esteve e a história também nos mostra isso.

Na realidade, talvez a mera contagem de medalhas seja uma medida pouco justa do esforço que se vai fazendo para participar em competições desportivas – ou, de maneira mais abrangente – da qualidade das políticas desportivas que se implementam. Certamente que o tamanho conta e que países mais populosos têm mais chances de encontrar super-talentos que os representem, independentemente do que falta fazer, antes e depois: a captação, a organização, o treino, o enquadramento na sociedade, antes, durante e depois dos períodos em que desportistas das mais variadas modalidades se dedicam a práticas de “alto rendimento” ou de “alta competição”. Para medir a qualidade, a eficácia ou o sucesso dessas práticas, relativizar o número de medalhas pela população de cada país oferecerá certamente uma comparação mais precisa do que representam as políticas desportivas nacionais – ou pelo menos de como se manifestam na obtenção de resultados. E é aí que se demonstra categoricamente o desastre histórico que temos permanentemente vivido – e continuamos a viver – em Portugal.

Mesmo contando só com os Jogos Olímpicos de Verão, que os de Inverno são em geral pouco propícios a uma prática regular no sul da Europa, os resultados de Portugal são uma lástima. O mesmo país que enche avenidas com celebrações eufóricas para vitórias futeboleiras, exibe pelo mundo permanentes figuras tristes, que a história acaba por revelar implacavelmente. Com base em várias compilações publicadas, é possível verificar que Portugal conquistou até hoje uma medalha olímpica por cada 440 mil habitantes (actuais) do país. Deixando de fora países com menos de um milhão de habitantes (cuja posição nestas tabelas é demasiado sensível a mais uma ou menos uma medalha) atrás de nós, na Europa, só encontramos a Moldávia, a Sérvia, o Montenegro, o Kosovo e a Macedónia, São todos países que resultaram da divisão da Jugoslávia e da União Soviética e que por isso participaram em muito poucas edições dos Jogos. Caso se considerasse a média de medalhas conquistadas em cada participação olímpica, Portugal ocuparia um destacado último lugar. E a participação deste ano em Tóquio, orgulhosamente apresentada como a melhor da nossa história, não destoa de tudo o que se fez antes.

Estes dados mostram outros aspectos da geo-política desportiva internacional. Continuando a deixar de lado os países com menor população (menos de um milhão de habitantes), encontramos nos dez primeiros lugares da tabela classificativa das medalhas olímpicas por habitante a Finlândia, a Suécia, a Hungria, a Dinamarca, a Noruega, a Bulgária, a Jamaica, a Nova Zelândia, a Estónia, a Alemanha Oriental (ainda!) e a Suíça. Em geral, são países que conquistaram a maior parte das medalhas durante o período em que tiveram um estado socialista, ou de países que reconhecidamente promoveram estados de bem-estar dos mais avançados do planeta. E se no primeiro caso até podemos dizer que os resultados desportivos foram regularmente utilizados como formas de promoção política e ideológica dos regimes então dominantes, já no segundo caso o mesmo não se aplica: não há grandes sinais de que governos da Finlândia, Suécia, Dinamarca, Noruega, Nova Zelândia ou Suíça evoquem os respectivos sucessos desportivos para fazer qualquer tipo de auto-promoção internacional.

Outro exemplo, aliás, das diferenças nos resultados desportivos entre um Estado altamente interventivo e um estado de orientação liberal pode encontrar-se ao comparar a China com a Índia: embora a população chinesa seja apenas 5 por cento maior que a indiana, a China conquistou em Tóquio 88 medalhas, 12 vezes mais do que as 7 conquistadas pela Índia. É visível que os resultados das Olimpíadas não se dão muito bem com as mais radicais economias de mercado: mesmo os poderosos Estados Unidos, líderes absolutos e inequívocos na conquista de medalhas olímpicas, aparecem na 39.ª posição quando se calcula o número de medalhas por habitante (atrás de grande parte dos países do leste da Europa mas também da Grécia, da Bélgica ou de Cuba).

O que os Jogos Olímpicos nos vão lembrando, implacavelmente, é essa ausência de uma política desportiva que integre a prática desportiva enquanto componente básica da educação e da formação integral de cada pessoa com as práticas orientadas para a competição e o “alto rendimento”. No caso português, faz-se pouco, num e noutro campo.

E de quatro em quatro anos (ou cinco, como nos calhou desta vez), celebrarmos essas misérias profundas da sociedade que conseguimos até agora construir. Fazer de conta que as quatro medalhas que vieram de Tóquio constituem qualquer coisa de notável é dar mais um passo para aprofundar essa miséria.

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