António Trindade, Presidente e Director Executivo da CESL-Ásia: “É em Macau que a gente se entende”

António Trindade considera que só será possível alcançar a sustentabilidade, se Macau for capaz de reter o conhecimento produzido ao longo dos anos. Para o CEO da CESL-Ásia, o Governo deve decidir urgentemente qual o caminho para a diversificação económica. Além disso, defende que a plataforma de cooperação entre a China e os países de língua portuguesa só existe no papel, quando na realidade ainda se impõem “barreiras artificiais”

 

Depois de décadas de experiência acumulada, que posição ocupa hoje a CESL-Ásia em Macau?

A empresa tem hoje quase 500 pessoas. No ano passado, tivemos quase 650 milhões de patacas de faturação só com serviços. Do zero a isso, em 30 anos, não é brincadeira, além de que somos uma empresa de referência em Macau. Empregamos muita gente de alto valor. Temos a experiência que poucas empresas no mundo têm em áreas como a gestão de património, de activos e manutenção de operações. Nem toda a gente compreende que a sofisticação de certas operações em Macau é única no mundo. Edifícios como os resorts no Cotai podem ter entre 100 a 150 mil pessoas a entrar e a sair por dia e 20 mil funcionários. Nós operamos uma lavandaria que trata diariamente entre 120 e 130 toneladas de lençóis e roupa, incluindo a lavagem e transporte. No mundo não há nada parecido e isto é de uma sofisticação enorme. Por exemplo, quando o aeroporto abriu em 1996, montámos um sistema de gestão de infra-estruturas, em funcionamento há cerca de 27 anos, que é uma coisa única no mundo. De cada sistema de lâmpadas, motor e peças que compõe uma infra-estrutrura sofisticada como esta, criámos uma base de dados. Isto não é só informação, é conhecimento que acumulamos há 30 anos.

Um dos destaques recentes da CESL-Asia é o lançamento da plataforma Ortux. Em que se materializa esta solução?

Há três ou quatro anos começámos a desenvolver a nossa própria plataforma de apoio e gestão que se chama Ortux e, no fundo, sofistica o tratamento de dados e é útil para o nosso pessoal. O nosso pessoal pode usar a plataforma para gerir equipas e comunicar sobre trabalho que tem de fazer, ajudando a reprogramar o serviço e a oferecer bem-estar a cada pessoa. O nosso sistema tem a diferença de enquadrar as questões financeiras. Esta solução é para ser usada por qualquer pessoa, desde os que asseguram o funcionamento adequado dos espaços, até aos proprietários que precisam saber custos e graus de eficiência.

Como é que essa informação pode ser utilizada para garantir a sustentabilidade das operações ou de um território como Macau?

A nossa experiência não é intangível porque temos a informação. Ao fim de 30 anos, temos milhares de terabytes de informação. O nosso sistema combina tudo e sabe o que pode acontecer em determinadas situações. Isto permite melhorar a qualidade de vida, aumentar o ciclo de vida, a utilidade das infra-estruturas e reduzir custos. Aí entramos na questão sobre o que é a sustentabilidade e como é que ela se consegue alcançar. Temos de usar a experiência acumulada e ter valores éticos. Hoje fala-se muito no desperdício, a questão não é nova. Estamos a gerar informação e temos capacidade para a processar. Há hoje pessoas capazes de analisar os dados e existe muito mais capacidade de computação, o que nos leva à inteligência artificial. Isto traduz-se em projecções que aumentam a sofisticação da previsibilidade e o aumento da qualidade de vida. A informação por si, só serve quem precisa de a utilizar. É um desafio grande porque a inteligência artificial, o Big Data, as cidades inteligentes não resolvem coisa nenhuma. Este é que é o problema.

Considera que o rápido desenvolvimento de Macau tem implicado acções contraproducentes ao nível da sustentabilidade?

É um desafio interessante porque, como sabemos, Macau desenvolveu-se inegavelmente nos últimos anos a nível económico, mas com uma iniquidade muito grande. Mas, quem é que tem acesso aos recursos, aos terrenos, à criação de valor e aos empregos que são úteis? Não estamos só a falar do bem-estar dos funcionários, mas sim da própria sustentabilidade das empresas, porque as empresas que não oferecem perspectivas de carreira, não estão a reter conhecimento e não estão a conseguir aplicar conhecimento no seu desenvolvimento, sobretudo porque Macau é uma terra de serviços.

Em Macau faz-se tábua rasa do conhecimento adquirido, mesmo em situações em que já se deram passos importantes?

Acontece muito porque as pessoas querem esconder o passado. Há dificuldade em lidar com factos. Veja-se, por exemplo, o que se passa, não só em Macau, mas em todas as sociedades modernas com as questões importantes de privacidade e informação. Hoje em dia é impossível fugir a isso. Na minha perspectiva, o Big Data tem um grande potencial de melhoria da qualidade de vida de cada um e não há nenhum trade-off a fazer ao nível da protecção de dados.

Que medidas ou incentivos podem ser criados para tornar Macau mais sustentável?

O maior desafio da sustentabilidade é sempre o Governo e o próprio Governo tem consciência disso. Os maiores contributos para a sustentabilidade e a para qualidade de vida das comunidades são os seus hábitos, a educação, a maneira de consumir, de produzir e acrescentar valor. Nestas comunidades inclui-se o Governo que é o líder principal disto tudo. Isto traduz-se, por exemplo, no facto de o Governo ter reconhecido recentemente a existência de problemas gravíssimos a nível ambiental quando, quem os denunciava anteriormente, eram grupos externos, nomeadamente a própria CESL-Ásia. O Governo diz que estamos a despejar mais de metade dos esgotos para a natureza, ou seja, a cada duas vezes que despejamos o autoclismo, uma vai directa para o mar. Pela primeira vez em 20 anos, o Governo, está finalmente a reconhecer isto. É uma verdade óbvia. A outra questão, também reconhecida pelo Governo, é a necessidade de diversificar a economia. O crescimento passou a significar regressão. Por cada mesa de jogo que se põe a mais em Macau, está-se a tirar produtividade às outras mesas de jogo. Isto é a insustentabilidade da vida real. A maioria das questões da sustentabilidade são resolvidas pelas comunidades e individualmente por cada um de nós, através dos nossos comportamentos.

Como é que se envolve a comunidade nessa mudança de paradigma?

Estamos a falar de qualidade de vida e de assegurar que amanhã a nossa pegada ecológica é menor. Muitos Governos ainda acham que se está a falar de compromissos e sacrifícios, quando é exactamente o contrário. Para isto acontecer, os Governos, as pessoas e as empresas têm de trabalhar em conjunto é o que faz sentido em termos económicos. Macau tem de começar a reter a riqueza que produz, no sentido de desenvolver a sua comunidade. Veja por exemplo os empregos que foram criados em Macau. Há 20 anos não havia muita gente formada em Macau, agora há muitas dezenas de milhares.

O tecido empresarial não é capaz de absorver essas pessoas qualificadas?

Não é só o tecido empresarial, é a sociedade toda. Desde o Governo às empresas. Nós oferecemos carreiras porque estamos a reter conhecimento e experiência e a usar esse conhecimento para acrescentar valor e ser competitivo no futuro e no imediato. Isto é o grande desafio que encontramos em Macau.

Como dever ser concretizada diversificação económica de Macau?

Não há nada mais fatal do que um serviço e o jogo é um serviço que tem que mudar. Temos uma ideia geral de como vamos diversificar e o Governo deu-nos nota do sistema financeiro. Faz sentido porque vai servir a economia da China. A minha opinião ponderada é que a economia de jogo não é a economia de maior valor para Macau. Não tenho dúvidas que a sabedoria indicaria para a necessidade de pegar na ideia da Plataforma, que não é de hoje. A Plataforma existe há pelo menos 500 anos. É aqui, em Macau, que a gente se entende e que e, nos últimos 20 anos, apesar de muitos acharem impossível, foram criados edifícios como os resorts e meteram-se cá 30 milhões visitantes por ano. Alguma coisa altamente sofisticada está a ser feita e isto é um valor intangível que traduz a direcção definida do Governo. Da mesma forma que o Governo criou um sistema de jogo altamente valioso, pode criar outro sistema.

Que outros caminhos podem ser seguidos?

O Governo só tem de definir [o caminho], porque depois é quase impossível errar. O papel que Macau pode ter para acrescentar valor à Grande Baía, basta o Governo definir com a China. Se é para apostar no sector financeiro, é preciso dizer o que não há em Hong Kong, o que falta às empresas chinesas e o que elas precisam que Macau faça é estabelecer vantagens de acesso aos mercados exteriores. E aqui já existe a Plataforma e a Lusofonia. Macau tem que olhar para os dois lados.

Há então a necessidade de apontar um caminho mais claro?

Claro, sem dúvida. Precisamos de uma perspectiva de valor. Em Macau diz-se que a economia é livre, mas não é tão livre como isso. A economia de Macau é dominada pelo jogo, mas o jogo resulta de uma concessão. Se isto acaba temos de encontrar uma solução para saber onde vamos aplicar o conhecimento e as capacidades que temos e com que sentido. Para que o sistema financeiro se desenvolva, vai ter que ser criada uma economia de serviços mais sofisticada e outras infraestruturas.

Porque não há mais empresas a apostar na Plataforma?

Há quantos séculos a actividade económica entre Portugal e a China é negligente, apesar da amizade secular e da criação de tanto valor de cooperação? Alguma coisa os dois beneficiaram, mas é completamente desproporcional ao potencial que isto tem.  Faz algum sentido que para fazer um investimento em Portugal só exista um banco em Macau, o BNU? Ainda hoje não existe infra-estrutura. A Plataforma não existe. Só existe no conceito, mas não é difícil de construir. O Governo tem os mecanismos para gerir as actividades económicas e as empresas chinesas são empresas estatais que funcionam como veículos da política económica. Não é muito difícil liderar um processo e estabelecer uma cadeia de valor nova altamente promissora.

Porque ainda existem estes constrangimentos?

Isto não é um constrangimento. O constrangimento é artificial. O Governo de Macau tem poder e capacidade para estabelecer a Plataforma e diversificar a economia. Deus queria que o faça. Agora, para o fazer tem que ser com a mesma intenção e sabedoria com que estabeleceu o maior e mais sofisticado mercado de jogo do mundo. Os técnicos, engenheiros e advogados que Macau formou nos últimos 15 anos estão a tratar de questões de crime, de cobrança, em vez de estar focados a criar conhecimento para a Plataforma. Alguma coisa tem sido feita no âmbito fiscal, como acordo da dupla tributação com Portugal. Mas isso são coisas pontuais e não contribuem para criar a Plataforma ou servir a economia da Grande Baía.

Depois do investimento no Monte do Pasto, os objectivos têm sido cumpridos apesar da pandemia?

Passámos razoavelmente bem pela pandemia, porque o Monte do Pasto é uma actividade com um nível de sofisticação pouco comum. Exportamos para mercados como o de Israel, onde cumprimos com requisitos de clientes exigentes e padrões religiosos como o Halal ou Kosher. Antes de investir eu próprio tive um debate duro sobre como é que uma empresa que se preocupa com sustentabilidade ia apostar em gado. A conclusão foi muito simples, pois existe a perspectiva de multiplicar valor através da aposta na sustentabilidade alimentar. Escolhemos Macau e começamos a desenvolver a nossa oferta de carne sustentável. Estamos a olhar para as coisas de uma perspectiva completamente diferente e a perguntar qual é o nosso contributo para a Humanidade. O negócio vem depois. No entanto, é impensável não termos autorização para exportar esta carne de alto valor para a China. Se as pessoas de Macau podem comer porque é que as de Zhuhai não podem? Estamos a falar das tais barreiras artificiais que podiam ser facilmente resolvidas.

Na sua opinião, qual o futuro de Macau na Ilha da Montanha, quando até o Chefe do Executivo disse que, em breve, o Governo Central vai dar uma prenda a Macau?

Acho que o Chefe do Executivo está a querer dar um sinal positivo para o futuro e a assumir um compromisso de que as coisas vão melhorar. Hoje a situação é stressante, na medida em que estamos aqui fechados, mas a vida em Macau é uma maravilha. O Chefe do Executivo está a dizer que há um futuro em Hengqin, mas vai ter de dizer que futuro é esse. Hengqin é uma infra-estrutura para um processo de criação de valor que nós, na nossa economia, e o Governo, temos de fornecer, principalmente, à economia chinesa, atraindo os agentes externos que se queiram relacionar. A ideia de Hengquin representa o compromisso assumido sobre a diversificação económica e a redução do peso que o jogo tem na utilização dos recursos de Macau. Ficamos à espera que o Chefe do Executivo nos diga o que precisa de nós, onde vamos poder acrescentar valor e quem serão os nossos clientes.

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