h | Artes, Letras e IdeiasPassado a ferro João Paulo Cotrim - 11 Ago 2021 Algures entre o Carmo e a Trindade, Lisboa, segunda, 2 Agosto Entra o homem com uma aranha na cabeça no transporte e o sinal civilizado do desejo de um dia bom desdobra-se em conversa acerca da meditação, da tristeza intrínseca do português passado a ferro, isto é, passada a fado, ida à desobediência civil a partir de Thoreau em diálogo com La Boétie, antes de aterrarmos na conversão e no destino final. A conversa vai ecoar, quase o diz, fechando a porta com mais aranhas na cabeça. Sente-se Forte. «Sai de novo para o mundo./ Fechada à chave a humanidade janta./ Livre, vagabundo/ dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.» Horta Seca, Lisboa, sexta, 6 Agosto O veneno da indecisão não resulta de cálculo algum das probabilidades, de sombra de avaliação com conta, peso e medida. Nem mesmo uma espera, esperançosa ou derrotista, tanto faz, de que um acontecimento se apresente, chegue e empurre, expluda e resolva. Pura e simples paralisia, disso falo: o viandante perdido em pleno cruzamento sem que a razão encontre migalhas, pistas, evidências – assim se diz agora a torto e a direito – que sustentem a escolha de rumo. Nevoeiro, portanto, e não noite, que mesmo no breu mais cerrado se distinguem formas. Em setembro próximo, cumprir-se-á uma década sobre o momento chão em se imprimiu por primeira vez a palavra abysmo na qualidade de marca e nome. Não era ainda editora, antes brincadeira. (Uma vida inteira a brincar com coisas sérias e depois ainda te admiras, digo eu de mim para mim.) Demorou mais do que um ano para o projecto se impor com a lâmina da pergunta: e por que não? Confesso que por estes dias o fio da navalha diz: para quê? Chegámos a pensar em escrever isso mesmo para dar cobertura ao esforço que significará abrir um pavilhão na Feira do Livro de Lisboa. Preferimos aniversários que abram para o futuro, ainda que lhe oferecendo as costas, como mandam os antigos, por estarem os olhos no percurso feito. A dúvida venenosa cresce, agravada pelo facto de não ser tempo de festa. Como assinalar a data sem nos deixarmos tragar pelo comemorativismo, invariavelmente rotineiro e bacoco? Ainda esteve em cima da mesa com o Jorge [Silva], uma frase de cada livro em cadáver esquisito, entre o divertido e o simbólico. Afinal, os muros daquela assoalhada no Parque dirão com singeleza e grito tão só alguns dos títulos que foram sendo experimentados neste longo período, muito longe da totalidade, nem mesmo com o esforço da abrangência. Terão que me perdoar os autores, por instantes e ali sem-título, mas o critério foi quase só a sonoridade, o despertar de um espanto, a estranheza. Há dez anos que andamos a dizer, a fazer nas entrelinhas, sem sair da encruzilhada, em carrossel. Mas cada nome possui voz e luz, que por aí circulam, dando sinal de vida discreta, mas pulsante. Mesmo os esgotados não se esgotaram. Resultam de inquietações, experiências, ânsias, gozos. Nenhum se renega, cada qual mantendo a força de um sentido, ainda que esquecido, sumido ou extraviado. Cada um erguido pelo somatório dos esforços, misto de laboratório e sapataria. Adiante veremos se o nevoeiro dispersa para mais passos e outra conversa. Santa Bárbara, Lisboa, sábado, 7 Agosto Espero que as ilustrações do Tiago [Albuquerque], paginadas com sentido do drama e a rasgar a dupla página, salvem este nosso «Jean Moulin: a sombra não apaga a cor», com o qual a Associação para a Promoção Cultural da Criança, do Paulo [Caramujo], se associa à Quinzena Jean Moulin. (Curioso que estes dias tenho sido pontuados pela vida de alguém que não esperou acontecer, que disse não! ao quietismo entrevado…) Tinha tido experiência anterior com constrangimentos prévios ao como contar vida concreta para crianças (abstractas), mas esta foi bastante mais desafiante uma vez que nela moravam como personagens a violência, o medo, em carne viva. A guerra tem, só para quem a não viveu, desconfio, um lado aventuroso e fascinante, que foi para sucessivas gerações alimento de imaginário voando abaixo do radar das culturas instaladas. Mas o quotidiano de um cenário de conflito armado, mais ainda no contexto de então, não se pode ficar pela epiderme de um jogo. Queria contar do que significa um herói, longe de ser super, alguém capaz de ler as circunstâncias e perante elas se afirmar como humano. Contra o mal absoluto. Apesar do seu próprio medo. E acrescentar a ideia de que uma comunidade ferida pode encontrar consolo, reconhecer-se em um rosto (concreto), parafraseando Malraux, no memorável discurso aquando da «canonização» no Panteão. Muito ficou por contar daqueles efeitos que a Segunda Guerra Mundial infligiu a França, tão profundamente que está ainda longe de ter exorcizado os fantasmas postos então à solta. Mais fácil foi incluir a passagem por Lisboa do mais jovem prefeito ou pormenores saborosos tais a sua paixão pelo desenho e o facto de nunca ter usado uma arma. Acabei fugindo pela metáfora, um verdadeiro porto de abrigo, onde ganhar forças antes de regressar à tempestade. A metáfora é o bom meio de transporte para escapar aos becos sem saída. O Tiago optou por realismo surpreendente, mais ainda no panorama actual da literatura para a infância e juventude, com um uso cirúrgico das cores, sem se preocupar em seguir de perto o fluir do texto e, sobretudo, sem traduzir para imagens desenhadas – estou certo que seriam mais belas – as visões espalhadas pelo texto. (Algures na página está uma das raras excepções, mas o resultado não podia ser mais poético: alguém que se desmultiplica na sombra). Cada plano oferece o impacto de um cartaz, sem com isso esquecer o chamamento da curiosidade. A infantilização tombou sobre os nossos dias, donde não se estranha que tenha chegado a esta vigiadíssima «literatura» para as crianças e os jovens. (Aliás, nunca os nossos dias foram tão vigiados e aqui se apresenta bom tema de livro para putos). Não sei se não deveríamos imprimir faixa avisando: «Cuidado! Livro difícil.» «Tant pis!». Talvez a dificuldade possa ser sexy, agora que tal sabor de boca é exigido a tudo. Contas feitas, estou sem saber se teremos conseguido atrair os leitores, que terão de ser competentes; atraí-los para a figura de Moulin e para o resto. Em caso de dúvida, há muito nas redes onde procurar lanternas.