As Viagens de Gulliver – Segunda Parte

Mais do que na primeira viagem, a Lilliput, é na segunda viagem, a Brobdingnag, que a configuração do nosso ponto de vista começa realmente a fazer efeito. Evidentemente, já na primeira viagem ficámos confrontados com a conformação extática do nosso ponto de vista, aquando dos relatos que os lilliputianos fazem dos objectos de Gulliver. Veja-se como exemplo esta passagem, à página 32: «Pediu-me depois uma das colunas de ferro ocas, ou seja, as minhas pistolas.» Perante a descrição dos objectos de Gulliver pelos lilliputianos, nós passamos a ver os nossos objectos pela primeira vez. Porque vemo-los sem o preconceito daquilo para que servem, da sua utilidade.

Mas é mais do que isso. Nós não vemos as coisas, mas o sentido que damos a elas. Os liliputianos descrevem o objecto, nós vemos uma pistola. Nós já não vemos as partes de um objecto, a não ser que sejamos entendidos no assunto. Ver as coisas para lá da sua utilidade pode ser através da completa ignorância do que sejam ou através de uma especialização desse mesmo conhecimento, como, por exemplo, aquilo que um guitarrista vê em relação às guitarras eléctricas, que é completamente diferente do que a maioria dos humanos vê. Os humanos em geral olham uma guitarra eléctrica e vêem uma guitarra eléctrica, assim como os humanos em geral vêem uma pistola, mas os guitarristas vêm as partes: a madeira do corpo, a madeira do braço, a madeira da escala, os carrilhões, se têm trava ou não, qual o material dos mesmos. Depois vêem a alma da guitarra: os captadores (pick-ups); primeiro, se são single-coil, humbuckers ou P-90, depois qual a potência deles. Ou seja, perante uma guitarra eléctrica a maioria de nós somos humanos e os guitarristas liliputianos. Já se deram conta, evidentemente, que o meu modo liliputiano em relação à guitarra é diferente do modo dos liliputianos em relação à nossa realidade, pois eles descrevem as coisas porque as desconhecem, não dizem pistola, descrevem-na, ao passo que os guitarristas, em relação à guitarra eléctrica, atentam nas suas partes e não apenas no todo, porque sabem muito bem o que é uma guitarra eléctrica e que a sua qualidade (ou a sua utilidade) depende da qualidade das suas diversas partes. Não apenas no sentido de que umas partes são melhores do que outras, mas no sentido em que umas partes são mais eficazes para um determinado estilo de música, ou para aquilo que o guitarrista quer tocar, do que outras partes. De facto, há dois modos de sermos liliputianos: ou o completo desconhecimento das coisas ou um grande conhecimento das coisas. Entre o completo desconhecimento e o grande conhecimento está o humano.

Assim, a diferença de tamanho entre nós e os liliputianos, muito menores, ou entre nós e os brobdingnaguianos, muito maiores, não configura apenas uma diferença de escala, mas uma diferença de visão do mundo. De outro modo, a diferença de escala faz com que nos demos conta de que a nossa visão do mundo depende da nossa escala.

Para além deste nosso modo de nos relacionarmos com o mundo circundante, com aquilo que usamos no dia a dia, há também o modo como nos relacionamos connosco mesmos e com os outros. E isto espoleta com muito mais força na segunda parte do livro, em Brobdingnag, porque somos mais sensíveis a perceber as diferenças quando corremos risco de vida ou somos mais vulneráveis.

Por isso mesmo, e não é por acaso, somente na segunda parte do livro Gulliver diz estas palavras: «Sem dúvida alguma, os filósofos têm razão quando nos afirmam que nada é grande ou pequeno senão por meio de comparações» (p. 82) Apesar de se ter dado conta da diferença de escala em Liliput, ele não era vulnerável, ou pelo menos não era vulnerável como o é em Brodingnag. Mais do que em Liliput, é agora em Brodingnag, que ele se dá conta de que o ponto de vista em que estamos usualmente é relativo. Aquela frase, logo no início da segunda parte do livro, aparece quando Gulliver chega a Brobdingnag e se lembra de si no país dos lilliputeanos. Há uma reconfiguração do plano, uma reconfiguração do ponto de vista. Antes, em Lilliput, ele era um gigante, agora a situação inverteu-se, os gigantes são os outros e ele sente aquilo que os lilliputianos deveriam ter sentido com ele, mas que lhe estava completamente vedado. No fundo, o que aqui está em causa, é que nós mesmos só conseguimos nos ver se acontecer uma catástrofe, isto é, um rompimento com o ponto usual em que estamos. Curiosamente, nas viagens que fazemos usualmente o que acontece é que nós reparamos nos outros, nas diferenças, e é isso que acontece com Gulliver em Lilliput. Ele enumera as diferenças, quase comicamente, mas agora, em Brobdingnag, ele apercebe-se dele mesmo. E apercebe-se dele mesmo através da comparação com a sua vivência em Lilliput. Literalmente, ele foi virado do avesso. Viu-se por dentro. Leia-se: «Nesta terrível agitação mental não podia abstrair-me de Lilliput, cujos habitantes me olhavam como o maior prodígio que o mundo tivera, onde eu podia, com uma só mão, arrastar uma armada imperial e cometer outros feitos fantásticos que ficarão para sempre registados nas crónicas daquele império […]. Pensava na mortificação que, para mim, devia representar o facto de ser tão mesquinho nesta nação quanto um lilliputiano seria entre nós.» (82) Esta contínua e radical alteração do ponto de vista, ir do tamanho natural a sentir-se extremamente grande e depois a sentir-se extremamente pequeno obriga Gulliver a configurar a sua existência e o mundo. Ele percebe claramente que estamos presos num ponto de vista fixo e não perguntamos por nada. Mas quando aqui se diz fixo, não quer dizer que ele não mude ao longo da vida, que nós não estejamos sempre a mudar aquilo que julgamos acerca disto ou daquilo, porque estamos, fixo aqui quer dizer que o nosso ponto de vista é dependente da nossa escala, que não é apenas de tamanho, embora seja, mas também do nosso corpus de conhecimento. Ou seja, nós vemos as coisas, não como elas são, mas com os apetrechos sensíveis e com o conhecimento que temos. Nós não podemos ver os átomos ou os poros da pele, por exemplo, nem podemos ver o que quer que seja fora do saber que temos. A este modo de nos mostrar como somos, através de uma projecção ou criação de outras escalas, chamo reconfiguração do nosso ponto de vista, porque é disso que se trata: passamos a ver que temos um ponto de vista fixo e do que é que ele depende.

(Continua na próxima semana)

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