O Jogo das Escondidas – Capítulos 31 ao 40

XXXI

Amoroso não percebia o que Benedito invejava na sua vida. Mas não replicou. Mudou de assunto:
– Bem, se Max Wolf quer guerra, vai tê-la. Ela não dará a outra face. Se é só uma forma de pressão, não resultará. O bom senso de Ding Ling é escuro. Selvagem.

– Sabe, tenente, Macau é apetecível. Não sei qual é o verdadeiro jogo de Wolf. Se quer só aproveitar esta desorientação portuguesa aqui e em Lisboa. Não sabemos se há mesmo negociações para vender o território à Alemanha. O dinheiro decidirá. E o patriotismo também. Só que Max pode querer aproveitar a brecha e abrir espaço para se estabelecer. Sabe como é. Dêem poder a um homem sobre os outros, e não demora muito até que ele perceba que não há limites para o seu próprio poder. E nenhum homem a quem se der esse comando será honesto durante muito tempo.

Amoroso tossiu. Estava demasiado fumo.
– Sim, qual é mesmo o jogo de Wolf? E qual será o futuro de Macau?

Os dedos da mão direita de Benedito Augusto cirandaram à volta do copo de cerveja que tinha à sua frente. Disse:
– Portugal, para mim, já não existe. É só uma ideia. Está lá longe. Macau está aqui. E sempre se salvou. E isso interessa-me. É a minha promessa de salvação na Terra. Quando cheguei à Ásia, buscava um clarão, que me iluminasse o caminho. Como dizia alguém, até aí só me tinham dado uma pequena vela para acender. Vi então as cores de um panchão. Encheu-me o coração. Percebi que era possível viver mais perto dos céus.

– Porque te tornaste jesuísta, Benedito?
– Fui um miúdo desobediente. Queria ordem. Com os jesuítas aprendemos a obedecer. É a nossa formação. Funcionamos como algo sem vontade ou juízo, que pode ser mudado de um lado para o outro sem resistência. Sentimo-nos leves. Depois foi a sua história. No século XII viviam na pobreza e abdicavam de qualquer adorno.

Vestiam-se de modo simples, só com batina e capuz, aprendiam a suportar a fome, a sede, a dormir sem tecto. Eram despojados de tudo. A simplicidade perfeita. Que coisa pode ser melhor do que podermos sair daqui para irmos embora, sem nada para transportarmos, para além do nosso corpo e espírito?
– E como concilias isso com o dinheiro que te pago?
– Por um espírito de missão. Só é pecado o que se julga que é. E acredito numa salvação que não tenha medo da fogueira.

XXXII

Amoroso já não tinha a certeza que existia a virtude. Os seus olhos brilharam.
– Onde andará Max Wolf?
– Ele vai aparecer. Ou me engano muito ou, uma noite destas, irá visitar Ding Ling. Ele precisa dela.
– Vou esperar uns dias. Mas depois terei de actuar. O Governador vai perguntar-me o que se passa. E eu não sei.
– Saberemos. É certo que, neste mundo, somos apenas ladrões do tempo. Um dia destes tornamo-nos dispensáveis e colocam-nos uma armadilha onde cairemos que nem tordos.
– Somos fortes, Benedito.
– É bom que pensemos isso.
Quando Amoroso o deixou, Benedito Augusto pediu outra cerveja. Não esperava ninguém. Queria estar sozinho e esconder-se, mais uma vez, do mundo. E da sua vida. Preferia a noite às horas mais malignas do dia, do calor. Pensou no tenente Amoroso, já corrompido, sem o perceber, pelo Oriente. Mesmo que dissesse o contrário, não queria trocar esta vida, de álcool, de mulheres, do jogo, das sombras, pelo que restava do império português. Mas a solidão e a bebida e o ópio deixavam marcas. Mesmo se tinha uma mulher forte a seu lado, Ding Ling. Não conseguira contar tudo o que sabia ao tenente. Talvez porque quisesse ter os seus próprios trunfos nas batalhas que se desenhavam. Ou por medo. Ou porque o seu seu instinto de sobrevivência era superior a qualquer lealdade.
Benedito Augusto pensou na sua própria vida e nos segredos que não partilhava com ninguém. Nem podia partilhar se queria continuar a dizer-se padre jesuíta. Desaparecia durante semanas de Macau. Secretamente, ia até Hong Kong ou Singapura, onde conhecera uma rapariga de remota origem portuguesa a que prometera vezes sem conta que deixaria de ser padre e casaria com ela. Nem sempre se sentia cómodo com estas diferentes máscaras. Mas eram elas que davam sentido ao conjunto de segredos que acumulara desde que deixara Portugal em 1910. Agora sabia que já não abandonaria a Ásia. Aqui perdera uma vida e ganhara algumas outras.
Bebeu o resto da cerveja e pediu outra. Recordou o seu encontro, nessa tarde, com Fu Xing no Grande Hotel, que ficava no extremo oriental da Avenida Almeida Ribeiro. Reformara-se da pirataria e, agora, pensava dedicar-se a negócios legais em Macau. Falava-se que iriam ser licitados os monopólios do tráfico de ópio e da lotaria. E Fu Xing, que tinha dinheiro para investir, desejava ter uma percentagem nesse lucrativo negócio.

XXXIII

Tudo era um jogo, como ele dissera com um sorriso maldoso:
– Vendemos as nossas almas, jogamos com elas e voltamos a ganhá-las.
Fu Xing deixara de usar camisas encarcadas de suor devido ao calor sufocante. Agora vestia um fato de linho claro e ia deixando crescer um bigode. Não cortara, claro, os laços com os antigos companheiros. Estes tinham juncos e lorchas cheias de armamento em pleno Porto Interior, incluindo modernas espingardas Winchester. Pareciam barcos de pesca ou de transporte de mercadorias mas, na realidade, a sua actividade era outra. A polícia não ía ali, por isso não era necessário estarem muito disfarçadas. Fu Xing não temia o passado. Afinal, por ali os piratas eram prezados. Gastavam muito dinheiro e os portugueses desviavam o olhar se eles circulassem, sem muito ruído, pela Rua da Felicidade ou pelo Porto Interior, como se não os vissem.
Fu Xing ocupava agora parte do seu tempo a encontrar-se com comerciantes chineses. O seu centro de operações era o Grande Hotel, onde também podia jogar fantan. Perto do mar, encontrara um refúgio perfeito em terra: um lugar com amplas salas e confortáveis quartos. Só o cenário mudava, porque o resto era igual: ópio, mulheres, falsos amores e traições. Benedito Augusto era agora o seu correio em Xangai e Singapura. Levava mensagens para os seus contactos e trazia as respostas de volta. Ninguém o pressionava, porque andava disfarçado de padre. Perguntara a Benedito:
– Quando partes para Xangai? Tenho recados para levares.
– Dentro de dias, mas ainda não sei. Tenho, primeiro, de resolver um problema aqui.
– Tu tens problemas?
– Soou-me que os alemães poderão comprar Macau. E se isso acontecer…
– Estarás seguro.
– Como sabes?
– Ontem esteve aqui um alemão. Como se chama ele…? Max Wolf. E fez-me uma bela proposta.
– Um negócio?
– Sim. Ele não sabe se Portugal vai vender Macau. Se vender, muito bem. Se não vender, nada correrá mal. O seu objectivo é outro. Ganhar dinheiro. Muito dinheiro.
Benedito viu o olhar guloso de Fu Xing.
– Que te propôs o alemão?

XXXIV

O chinês olhou-o desconfiado, mas depois deu uma pequena risada.
– Posso contar-te. Tu poderás ser muito útil. O alemão tem heroína, uma droga muito mais potente do que o ópio. Traz euforia e também conforto. Os mais novos vão preferi-la. Ele tem uma fábrica que transforma ópio em morfina e, depois, em heroína. Falta a distribuição. E é isso que ele quer que eu faça. Ele tem o produto e eu os meios. Acho que é um bom negócio. E muito rentável.
– E como sabes que isso não é uma grande mentira?
– Padre, eu fui pirata, mas sei mais do que aparento. E sei ler as pessoas. Também tenho bons informadores. Max Wolf tem um químico alemão a trabalhar com ele em Xangai. Numa fábrica escondida, de que nem as tríades desconfiam. Fica numa fábria de cerveja. Wolf e o químico trabalharam numa empresa alemã, a Bayer. Onde aprendeu a extrair a heroína. Eles são negociantes, padre. Eu também o sou. O dinheiro une-nos.
Nos olhos de Fu Xing havia determinação. Por ali não navegavam fantasias contadas por marinheiros e soldados da fortuna, e que muitas vezes embalavam os sonhos de quem as escutava. Estava certo das suas escolhas e elas tinham a ver com o poder e a riqueza. Nada mais. Benedito levantou-se e saíu. Inspirou o aroma da noite, ainda contaminado pelo odor da pólvora queimada. O incêndio ainda não se tinha extinguido. Vivia-se uma falsa paz. Parou, fascinado pelas as águas do delta do Rio das Pérolas e olhou para os barcos chineses com a sua cobertura arrendondada, onde se abrigavam as famílias. Pequenos face às lorchas e aos poderosos juncos de grandes velas. Fora o mar que trouxera os portugueses até Macau. Fora ele que permitira que muitos deixassem Portugal, terra onde era difícil deixar de ser pobre. Mas o mar cansa os povos. Alguns, como ele, queriam afastar-se do mar e dos seus fascínios e encontrar a paz em terra. Onde as águas revoltas não o perturbassem. O mar tudo prometia. E tudo afogava.
Caminhou pelas ruas, polvilhavas de chineses, sentados em pequenos bancos, ou no chão, a comer arroz branco, cozido e sem sal, com pequenos edaços de carne e de peixe e legumes salteados. Habituara-se ao aroma forte das comidas chinesas, dos seus fritos, que como noutas cidades orientais, eram omnipresentes. Sabia para onde se dirigia. O pequeno quarto onde dormia não ficava longe.

XXXV

O mundo muda. Isso é inevitável. Talvez isso seja a única coisa que é inevitável, dizia, com voz serena, o governador Rodrigo Rodrigues. E acrescentou:
– Gosto da forma como vê o mundo e as suas mudanças, tenente. No fundo, como ele é. Observa as verdades e as mentiras e sabe como navegar entre essas duas grandes ondas sem ser submerso.
Félix Amoroso sentiu-se tocado pela amabilidade:
-O senhor tem uma visão demasiado bondosa de mim e das minhas acções.
– Até agora não me desiludiu.
Estavam na varanda do hotel Boa Vista, um local que parecia atrair ambos quando necessitavam de falar de coisas que consideravam importantes. O tenente transmitira-lhe as novidades sobre o assassinato de João Carlos da Silva. Tinha algumas pistas, mas não tinha certezas. Disse que tinha ido à casa deste e a inspeccionara mas escusou-se a mencionar o que descobrira lá. Especialmente uma carta de amor escondida por detrás de um espelho e assinada apenas com uma inicial. Amoroso não tinha certezas sobre quem a enviara. Mas suspeitava.
Lá dentro a festa continuava, num daqueles fins de tarde irrepetíveis de Macau. Escutava-se o som da banda de Borromeo Lou, um pianista de grande talento. Viera das Filipinas, e era a maior atracção do Bodabil, uma espécie de jazz. O sucesso que alcançara em teatros de Manila, como o Savoy e o Lux, e também no Carnaval da capital filipina, fora presenciado por Ana Ledesma, uma filipina que casara com um advogado português de Macau. Para ela era mais do que uma banda, porque eles prometiam um espectáculo total. Aproveitando uma ida de Lou a Hong Kong, tinha conseguido desviá-lo até ao Boa Vista, prometendo-lhe um público entusiástico. Muitos dos temas eram baladas sensuais cantadas por Miss Toytoy, a vocalista chinesa e uma artista completa. Convidavam à dança e ao amor. Mas o espectáculo era mais vasto. Amoroso gostara muito do barítono Datu Mandi (de origem Moro, que também cantava excertos de óperas).

XXXVI

Barromeo Lou, no início do espectáculo, dissera: “Se estiverem doentes, venham e ficarão curados. Se estiverem quase a morrer, venham e dêem uma boa gargalhadas antes disso acontecer. Se estiverem bons, venham e ajudem a transportar as vítimas da fobia do Jazz”. Ninguém deixara de rir. A boa disposição reinava. E depois dançara-se. Lá estava a nata da sociedade macaense, incluindo Joaquim José Palha e a mulher, Sofia. Palha aproximara-se de Amoroso e inquirira-o sobre o acordo que lhe propusera. O tenente respondera-lhe que falaria em breve com o Governador. Não se tinha esquecido. Palha afagara-lhe o braço e sussurara:
– Tem tudo a ganhar, tenente. Sabe que sim.
Deixara-o e voltara para conviver mais um pouco com os seus amigos. E dera espectáculo, quando dançara com Miss Toytoy. Era um excelente dançarino, como Amoroso podia testemunhar.
O Governador colocou um cigarro entre os lábios e acendeu-o. Após a primeira baforada, olhou para o tenente e disse:
– Uma das primeiras coisas que aprendi na vida é que é uma má ideia conheceres os teus heróis porque, geralmente, eles decepcionam-te.
– Aconteceu-lhe isso, Governador?
– Acontece a todos nós. Na política é fácil isso suceder.
Amoroso sentiu que o Governador perdera algumas ilusões que tvera no passado. Talvez com outros republicanos e membros da Maçonaria como ele.
– Ainda assim as pessoas precisam de memórias. Tal como as nações. Sem elas, o que resta? Nada. O que seria de Portugal sem as suas memórias? Sem um passado de que nos possamos orgulhar, como podemos ter alguma fé no futuro? Não é por acaso que nos agarramos a ele. Talvez porque não haja mais nada a que nos podemos segurar para não cairmos de vez. Foi esse o trunfo dos republicanos. Quando a Monarquia não soube o que fazer face ao Ultimato inglês, os republicanos recuperaram Luís de Camões, o patriotismo e o passado. Isso conquista os corações e as almas quando sentimos que o mundo está a ruir à nossa volta. Só que isso não chega.
Eram palavras de um homem cansado. Talvez desiludido. Ou então, isso era fruto daquele entardecer e daquela música que fazia ecoar imagens que o tempo tentara, sem o conseguir, apagar.

XXXVII

– Gosta de história, tenente? Aprendemos muito com ela. Pense numa coisa. Quando os impérios Ming e Otomano fecharam a Rota da Seda, os portugueses descobriram o seu destino. Dobraram o Cabo da Boa Esperança e fizeram da geografia comercial o seu legado à Europa. A Rota da Seda portuguesa fez-se por mar, evitando desertos, seduzida por sereias e atormentada por monstros marinhos. Lisboa tornou-se, por momentos, Veneza e Constantinopla. Foi uma utopia, tão sedutora como a que Camões cantou nos “Lusíadas”. Por momentos os portugueses foram deuses. Portugal deve parte do seu passado à Rota da Seda. Por isso Macau é tão especial para mim. E para si, não?
– Passou a ser quando conheci esta cidade melhor. E em especial as suas pessoas. Tão diferentes, com cada um à procura do seu destino. Uma das coisas especiais aqui é que as coisas nunca acontecem como se espera.
– Nunca acontecem. Não conseguimos manobrar o futuro. Bem, chega de conversa séria. Este é um dia para nos divertirmos. Vou voltar para dentro. Fica?
– Fico mais um pouco.
O Governador cruzou-se com Sofia Palha que caminhava altiva, como sempre. O seu vestido fazia jus à sua estrutura física. Era alta e musculada. A sua face ainda transmitia juventude. Aproximou-se do tenente e, sorridente, disse:
– Gostei muito da apresentação de tango há uma semana. Veio? Não o vi. É a dança do amor. Há demasiado contacto carnal para o gosto do meu marido, mas eu senti a força que transmite. Gostaria de aprender a dançá-lo. Mas, para isso, precisava de um bom par. Dizem-se que agora o que está na moda é o foxtrot. Pelo menos em Xangai. Aquilo é uma cidade…
Mostrava ter ideias firmes, mas a sua voz era sedutora. Aproximou-se mais do tenente.
– O seu nome é curioso. Amoroso. Aplica-se à sua vida?
– A necessidade, minha senhora, não conhece leis. Essa é uma das primeiras normas da diplomacia. Considere o seu marido, por exemplo. O costume, que é quase sempre a base de qualquer lei, dirá que, numa festa em sua casa, ele deve estar presente para entreter os convidados. Mas, imaginemos, que não está, porque tem necessidade estar a trabalhar num dos seus negócios. A necessidade, ignorando o costume, obriga-o a ficar longe, desapontando quase todas as pessoas. Mas alguém pode ter vantagens com base nessa necessidade.

XXXVIII

Ela fitou-o, espantada:
– O que quer dizer com isso, tenente?
O olhar de Sofia era mortal.
– A sua consciência está tranqula, minha senhora?
– Sempre esteve. Mas não compreendo as sua palavras. Elas parecem implicar que não deveria estar.
Amoroso tirou do bolso do casaco uma carta. Abriu-a e colocou-a defronte da face de Sofia Palha. Esta não disse nada, mas os seus olhos mostravam tudo.
– Reconhece a letra? É sua?
– Onde encontrou essa carta, senhor tenente?
– Onde pensa que foi?
Sofia Palha desviou a cara para o horizonte, onde a luz começava a desaparecer.
– E o que pretende fazer com ela? Fazer com que me sinta culpada de algo e comece a chorar?
– Eu só quero descobrir quem matou o senhor João Carlos da Silva. Não me interessa levantar o véu sobre outros segredos. Só aqueles que têm a ver com esse assassinato. Foi a senhora que o matou?
Ela fez um gesto de repulsa:
– Eu? Nunca? Eu amava-o.
– Há, como sabe, uma linha muito fina entre o amor e o ódio. Entre a morte e a vida.
– Não, tenente. Amei-o até ao fim. Foi uma paixão que durou meses. Até à sua morte.
– Sem o senhor Palha saber?
– Sem ele saber. Era um segredo só nosso. E o João era um homem em quem se podia confiar. Eu mandava-lhe pequenas cartas. Só assinadas com a inicial S. E ele sabia que as tinha de destruir logo a seguir.
– Esta ficou.
– Uma recordação. Não o deveria ter feito, mas compreendo-o. Era um homem apaixonado.
Sofia Palha voltara a ganhar a segurança que perdera momentaneamente. Os seus olhos aceitavam o desafio do tenente. Fez um sorriso triste:
– Eu também quero descobrir quem o matou. Mas, diga-me, tenente. Já estamos a falar há algum tempo. Se alguém nos vir aqui, só os dois, o que pensará? Eu espero que goste de estar comigo. Não consigo pensar em nada melhor do que isso. Mas se andarmos um pouco e formos para um local onde todos nos podem ver, não levantaremos suspeitas. E não estaremos sujeitos a mexericos, como se continuarmos aqui e alguém nos surpreender. Eu posso contar-lhe alguns segredos.

39

O tenente sabia que Sofia Palha detinha informação muito útil. Mas o seu jogo era perigoso. E Amoroso, nesse momento, não queria arriscar.
– Podemos ficar por aqui na nossa agradável conversa. Irei saber se o que me diz corresponde à verdade.
– É a verdade.
O tenente fez uma ligeira vénia e foi em direcção do local onde ainda se dançava. Foi despedir-se do Governador e da sua mulher. A noite chegava. À porta do hotel entrou num riquexó que o levou até à Rua da Felicidade.

10.

Os olhos de Ding Ling eram muito escuros. Mas, para Félix Amoroso, olhá-los era como ver o fundo do mar. Vemos tudo, sem saber nada. Tal como eles, a sua alma era insondável. Se fossem claros, de um jade muito límpido, poderiam deixar ler o que ela pensava? O tenente não tinha a certeza, mesmo naquele momento em que a sua mão estava colada em cima do seio esquerdo dela e Ding Ling parecia vulnerável como nunca. Os seus corpos estavam quentes, cobertos de transpiração e colados um ao outro. Ela soergueu-se e beijou-o na boca e no peito. Depois voltou a deitar-se, totalmente encostada a Amoroso. A sua respiração voltara a ganhar a serenidade que ele conhecia, depois de momentos de exaltação.
Quando se tinham deitado ela colocara-se em cima dele. As suas mãos seguraram-lhe o peito. Tinha soltado o cabelo e, enquanto se movia lentamente, este caíra-lhe para a face, escondendo-lhe os olhos. Amoroso tentou erguer-se para se perder nos cabelos dela, procurando os seus lábios para a beijar. Não conseguiu, porque a força de Ding Ling empurrava-o para trás. E ela, parecendo frágil, era mais forte porque também usava a força do tenente. Havia algum desespero na forma como os seus corpos chocavam. Depois deixaram-se cair, em silêncio.
Nem sempre os sentimentos podem esperar, sussurrou Ding Ling. Como se admitisse alguma culpa, coisa que nela era improvável. A sua fortaleza erguia-se sobre a intimidade e a lealdade. Era isso que, mesmo contra o vento, oferecia a Amoroso. Não era pouco. A mão dele voltou a explorar a pele dela, deslizando até ao sexo, onde ficou. Ela não se mexeu. Mas ele sentiu que o seu corpo passara a estar vigilante.

40

“Formosa como um anjo, mas com um punhal na boca”, dissera-lhe ele um dia. Era sorrira. Ding Ling nunca lhe pedira nada em troca das noitas em que o seu corpo oferecia o prazer que Amoroso ambicionava para poder repousar.
Durante quase uma hora deixaram-se estar ali, murmurando perguntas e respostas, com o coração a responder ao coração, os olhos a ler os olhos, e as mãos procurando o corpo do outro. Até que por fim Ding Ling se levantou e foi acender uma vela que deixava apenas um pequeno rasto de luz. Assim o seu corpo nu era mais misterioso e ela deixou-se ficar, por momentos, encostada a uma parede enquanto ele a contemplava.
– Gostarias que eu cantase para ti?
– Não. Isto é, gostaria, mas tu também estás cansada.
– Disparate. Dormi bastante esta manhã. Posso cantar, muito baixinho.
Assim fez. A sua voz recordou uma canção melancólica que aprendera, talvez em Xangai. Falava de amores perdidos na noite, que desapareciam como fantasmas e depois regressavam através de outros corpos. Mas o amor era o mesmo. Depois sentou-se numa cadeira de bambu e deixou ficar-se ali, sem se vestir.
– Está escuro. Queres mais luz?
– Gosto de te ver assim. Impossível de decifrar totalmente.
Ele levantou-se e aproximou-se dela. Afagou-lhe a face e o pescoço e ela encostou a cabeça ao corpo dele. Ele contou-lhe a conversa que tivera nesse final de tarde com Sofia Palha. Ding Ling levantou-se para o fitar nos olhos.
– É difícil que confies neles. Nela ou no marido. Cada um faz o seu jogo. Talvez o mesmo jogo, com cartas diferentes. Eles são mestres do subterfúgio, idolatram a intriga, a sedição. E a sedução. Trairão qualquer pessoa para conseguirem o que querem. Amanhã serás tu. No dia a seguir o senhor Wolf. Ela poderia ter interesse no corpo do senhor Silva. Mas a carne é, muitas vezes, a porta de entrada para a alma. E o senhor Silva era muito frágil. Li Bei sabia isso.
– Achas que algum está ligado ao alemão?
– Não duvido. Se chegasses a Macau com uma ideia de negócio como o senhor Wolf, quem procurarias conhecer? Palha é um homem com muitas conexões. E a mulher não olha a meios para conseguir atingir os seus fins. Um deles, senão os dois, estão ligados a ele. E talvez o senhor Silva estivesse também, por via disso.

(continua)

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