Golos políticos

Ele está em todo o lado e é todo-poderoso. São milhares de seguidores em histeria colectiva nas ruas e outros tantos em histeria privada nos seus sofás. São ligas e taças nacionais, ligas e taças europeias, são os festejos da Champions e vem aí o Euro! Homens a baterem em mesas de cafés com a saliva a escorrer-lhes pelas mãos. A soltar uivos selvagens quando o seu clube atira a bola para dentro da rede. Os grupos de ingleses bêbados a sorrirem de forma animalesca para as câmaras de televisão, a destruirem esplanadas inteiras. Quando um fenómeno colectivo não nos diz pessoalmente muito, é inevitável achá-lo irritante.

E eis que a sua origem milenar, como tantas origens milenares deste mundo, é chinesa. De acordo com a FIFA, o Futebol nasceu na China da Dinastia Han e deriva do Cuju, um antigo jogo de bola chinês. Na Europa, chegou a incomodar Eduardo II de Inglaterra que teve que impor restrições à prática do futebol em 1300 para que os seus soldados parassem se de dedicar à bola e treinassem mais tiro com arco, bem mais útil militarmente. Mas o desporto tem esta faceta da união, dentro da sua rivalidade. A União Europeia antes de ser uma aliança militar ou entidade económica deveria ser, de acordo com Robert Schuman, ministro dos Negócios Estrangeiros francês e arquiteto do projeto de integração europeia, uma comunidade cultural. As identidades culturais costumam formar-se em torno da literatura, do cinema ou da música. Contudo, o factor da diferença linguística torna-se neste caso um divisor irremediável. Então os sociólogos voltaram-se para o desporto eleito e para a forma como este se tornou um valor transnacional, capaz de fazer com que os povos exercessem assim, de forma mais pacífica, o seu nacionalismo, a exibição da sua identidade colectiva, o depósito na competição desportiva de uma intrínseca necessidade humana de pertença. Foi assim criada a UEFA e a atual Champions League. Jogos que cruzam o leste e o ocidente, uma expansão progressiva do espaço europeu onde se incluem países como a Islândia, a Turquia ou o Azerbaijão. É preciso acabar com a narrativa ingénua que separa completamente o futebol da política porque, se por um lado o futebol transcende a política, ele também lhe pertence. Na ultima década temos assistido à crescente desigualdade entre clubes que se baseia, puramente, na crescente desigualdade económica. O futebol é também espelho do que se passa no resto da sociedade. Corrupção, evasão fiscal, lavagem de dinheiro, tráfico humano, crime organizado. Este espaço de integração que devia pertencer ao colectivo é também refém de interesses privados e políticos. Na Turquia, com o aproveitamento partidário de Erdogan. Na Hungria, onde Viktor Orban decidiu fazer um movimento para tornar o futebol húngaro “Great Again” e reforçar severas leis anti-imigração. Nas máfias conhecidas cá da terra. Se por um lado, o futebol é união e manifestação de identidade coletiva, ele também é manipulação e fator de exclusão. Durante o período da revolução industrial, quando as mulheres começaram a exercer trabalhos nas fábricas até ali só exercidos por homens, tornou-se comum ver grupos de mulheres a jogarem futebol. Mas a Associação de Futebol considerou que o jogo, aos pés das mulheres, era incongruente e baniu-o até 1971. Hoje, podemos dizer que as coisas estão mais equilibradas. Sim, estão “mais equilibradas” mas ainda não realmente equilibradas. É inevitável associar o desporto ao género masculino e é essa exclusão estrutural que faz com que me sinta alienada. São grupos de homens a entregarem-se às causas dos seus clubes, de corpo e alma. E eu talvez um dia alcance a pureza de me preocupar mesmo com uma bola a entrar numa rede mas, por enquanto, agradecia que pudéssemos falar de outras coisas.

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