Terceiro acto – Cena 2

Gonçalo continua absorto na sua nuvem de fumo, há qualquer coisa de mágico na forma como o fumo se espalha pela divisão, iluminado pelo luar que vem da janela. Os pássaros nocturnos vão picando o ponto na noite silenciosa que se adivinha lá fora. Ouve-se uma descarga do autoclismo, depois água a correr do lavatório. A porta do fundo abre-se, Valério entra, volta a fechá-la atrás de si e aproxima-se da mesa. Abre o frasco de tremoços e trá-lo consigo de volta ao seu lugar.

Gonçalo
Lavaste as mãos, fofa?

Valério
Claro, meu amor.

Gonçalo levanta-se e vai buscar duas tigelas a um dos armários por cima do balcão lava-loiça. Depois pega num dos pacotes de batata frita e regressa ao seu lugar. Abre o pacote e deita algumas para uma das tigelas. Valério já mastigou alguns tremoços e usa a outra tigela para as cascas.

Gonçalo
Foram jantar e…?

Valério
E… [longa pausa] Não sei exactamente quando é que foi, mas sei que foi cedo… que me esqueci de que estava a falar com uma mulher com metade da minha idade…

Gonçalo
[interrompendo]
Uma mulher. Muito bem!

Valério
[confuso]
O quê?

Gonçalo
Por isso é que te esqueceste da idade dela… olhas para ela como uma mulher.

Valério
Hmmm… pois. [pausa] Estava completamente babado a ouvi-la… no meu babete interior [ri-se]. Ela é inteligente… tem a voz aveludada… e cheira tão bem, valha-me Deus. [pausa] Mas depois lembrei-me de como fomos ali parar… e lembrei-me da idade dela… e comecei a gaguejar. [pausa] Acho que ela notou… e até achou piada. Entrámos no carro… ela queria ir dançar. Mais um lembrete: já não danço. É da idade. Ela pediu-me para tentarmos noutro dia… beijou-me. [pausa] Foi sair com umas amigas, deixei-a à porta de um bar… depois fui para casa.

Gonçalo
E porque é que estás com o ar mais deprimido do mundo?

Valério
É uma boa pergunta…
Gonçalo
Pois é.

Os dois ficam novamente em silêncio. Gonçalo acende dois cigarros ao mesmo tempo e dá um ao amigo. Agora contemplam a nuvem de fumo e os estranhos padrões mutáveis que ela vai formando. Valério volta a olhar para o texto de Gonçalo. Hesita antes de falar.

Valério
[indicando o texto]
Talvez o sentido mais alargado de que falava, essa coisa mais impenetrável e absoluta, já lá esteja… [pausa] Eu sou demasiado analítico… por isso é que me pedes para ler os teus textos. [pausa] Está lá alguma coisa… isso é certo. E pelo simples facto de não falares dela, torna-se quase palpável… Há uma força qualquer… não sei apontá-la, confesso. Mas pressentimo-la a cada frase. E não estou a falar deste texto em particular… falo da tua escrita em geral. [pausa] Às vezes parece totalmente superficial… irónica, muitas vezes sarcástica… mas… lá está… do nada pregas-nos uma rasteira e passamos a ver tudo com outros olhos… é interessante… muitas vezes essas rasteiras vêm tarde no texto, mas mesmo assim, quando acontece, revemos tudo num ápice, desde o início, com outros olhos… até ao ponto da rasteira… e percebemos que o que quer que nos tenha feito tropeçar já lá estava desde início… e era tão óbvio… mas estava muito bem disfarçado.

Valério volta a reler algumas passagens. Gonçalo termina o seu cigarro e acende outro com a beata do quase defunto. Depois serve-se de mais vinho.

Valério
O truque é… [interrompe-se] Não há truque, eu sei… da tua parte. Para quem lê, sim, pode passar por truque… mas isso não é mau… [indica o fumo dos cigarros] É como estas nuvens de fumo… há algo de fortuito nas formas… imperfeições, às vezes parecem inacabadas, outras parecem ter sido excessivamente elaboradas… mas aconteceram assim, formaram-se assim… e é precisamente nesta aleatoriedade que reside a beleza destas nuvens de fumo, não é?

Gonçalo
É… acho que sim.

Os dois ficam durante algum tempo a admirar as nuvens de fumo que se espalham novamente pelo tecto. O luar está ainda mais intenso.

Valério
Vais continuar?

Gonçalo
O Joãozinho Neo-Nazi?

Valério
Isso era um título com tomates!

Gonçalo
Também acho… [pausa] Vais vê-la outra vez?

Valério
Pois que não sei…

Gonçalo
Acho que devias…

Valério
Eu acho que não. [pausa] Ela vai querer dançar… eu vou querer ficar-me pelo jantar… Isso aguenta-se durante uns meses… e depois? Eu quero ler… quando muito ir ao cinema… e chega. E depois? [pausa] Às tantas ela farta-se, começa a dar-se conta dos anos que nos separam… gosta muito de estar comigo, mas… e eu não digo nada, deixo andar… e ficamos assim, durante algum tempo, até os ventos da paixão amainarem… [os dois desatam à gargalhada]. Que azeiteiro…!

Gonçalo
Até Os Ventos da Paixão Amainarem… o novo romance de Valério R…

Valério
Prefiro ir dançar!

Gonçalo
E achas que ela é como tu…? [ri-se] Que vai deixar andar até os ventos da paixão amainarem…?

Valério
É bem visto… Não sei. [pausa] Mas sei que não vou esperar que chegue até aí. E já percebi que ela quer dançar e sair… e vai querer que eu conheça os amigos e as amigas… Deus me livre e guarde!

Gonçalo
Se calhar ela sabe como és e não vai insistir.

Valério
Vai, vai… não tenho a mínima dúvida.

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