Artes, Letras e IdeiasWilly DeVille, o inquilino da sua própria vida Paulo José Miranda - 30 Mar 2021 Quem vem acompanhando os textos que tenho publicado no último ano, já está familiarizado com uma corrente literária – tanto na ficção quanto no ensaio –, a «rock reflexion». Hoje gostava de apresentar-vos um outro livro da «rock reflexion», muito tocante, e que tanto pode ser considerado um ensaio, como uma biografia ou um romance. O livro de Jacqueline D. Broussard, de New Orleans, é contruído sobre contínuas obsessões e tem o título de «O Inquilino». A primeira das obsessões, aliás o livro é à volta dele, é a do cantor Willy DeVille, que morreu em 2009, de cancro no pâncreas, com 58 anos. Mas o livro não conta apenas a história deste cantor, conta o desencontro entre ele e a vida. A história começa em finais dos anos 80, quando DeVille se muda para New Orleans e, como ele mesmo disse muitas vezes, foi como se estranhamente chegasse a casa. E, na verdade, não apenas a sua carreira, mas a sua vida tomam outro rumo. Não propriamente uma mudança radical, já que, como Broussard escreve, «Willy não deixou de consumir heroína, não deixou de cantar e nem deixou a sua segunda mulher, com quem era casado desde 1984. Mas passou a cantar blues como se não tivesse cantado mais nada na vida.» Depois de começar com os anos de Orleans, através de uma analepse, a narrativa recupera os anos do liceu, quando conhece a sua primeira mulher, a completamente louca Toots, que apagava cigarros nos olhos das mulheres que olhavam para Willy e encostava objectos cortantes às gargantas dos técnicos de som que não aumentavam o som do microfone dele. Essa analepse retorna também aos dias em que, já sem Toots, em Paris, conhece Lisa, a sua segunda mulher, na época namorada de Iggy Pop, e que será tão importante na sua vida. É um livro que parte da vida e da voz de Willy, para abordar um catálogo de obsessões, tanto do cantor quanto da escritora. Para quem não conhece o cantor, e provavelmente são muitos, tem uma voz única «e uma tristeza exemplar», como escreve Broussard. Muitos são os músicos que lhe prestam homenagem, entre eles Bob Dylan, que várias vezes disse publicamente que deviam pôr o nome dele no Rock & Roll Hall of Fame. Caso queiram ver um concerto na Alemanha, acústico, um ano depois da sua mulher, Lisa, se ter enforcado e de ele se ter tentado matar, jogando o carro por uma montanha abaixo e ter partido mais ossos do que os que tinha, eis aqui: https://www.youtube.com/watch?v=O4F-KpSWMBo. Para quem queira apenas ouvir uma pequena canção dele, a última que canta nesse concerto, já no «encore», cliquem aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ioxeqbQCvMo. Nesse concerto em Berlim, está sentado, porque não consegue estar muito tempo de pé. Também já não tomava heroína há dois anos, embora esteja muito bêbado. Apesar disso, a actuação não perde nenhuma qualidade. Curiosamente, só se percebe que ele está bêbado quando pára de cantar, entre canções. Se vos falo desse concerto é porque Jacqueline D. Broussard o menciona várias vezes no livro, embora não seja o concerto preferido dela. Da primeira vez que o faz, escreve: «Apesar de estar sentado e de ser caucasiano, ninguém nos lembra tanto o mestre Sonny Boy Williamson a cantar “Nine Bellow Zero” como Willy DeVille na primeira canção. Não pelo registo de voz, mas por tudo o resto. Ali, naquele palco, ladeado por um piano e um contrabaixo, não é um homem que canta, é uma dor que se expressa. Não era apenas a culpa pelo enforcamento de Lisa ou por uma vida jogada à heroína, era fundamentalmente a consciência de ser um inquilino da sua própria vida. A culpa era apenas a moldura desse quadro em cinzas frescas.» Em 1984, Lisa tinha deixado Iggy Pop para casar com Willy. Viveram juntos 17 anos, até ao suicídio de Lisa. Willy já estava apaixonado por Nina, que se tornaria a sua terceira mulher. «As mulheres nunca foram um entretenimento para Willy. Neste sentido, era o oposto da rock star. Fora do palco, a mulher com quem vivia era o seu mundo. No tempo de Toots, Willy tinha três obsessões: Toots, cantar e a heroína. No tempo de Lisa, também três obsessões: Lisa, cantar e a heroína. E as obsessões não têm ordem de prioridade.» Jacqueline D. Broussard, também continuamente presa nas suas obsessões, em sete páginas, desmonta uma canção de menos de quatro minutos, de outro dos concertos de Willy, após o suicídio de Lisa, o concerto que ela prefere de entre todos os concertos do cantor, Avo Session, na Suiça. De facto, é arrebatador. A canção acerca de que Jacqueline D. Broussard escreve várias páginas é «Let It Be Me», dos Everly Brothers: https://www.youtube.com/watch?v=5bC8iYBlZ7g. Leia-se: «A diferença entre a versão dos Brothers e a de Willy não é a diferença que há entre a vida de um homem feliz e a de um homem triste, mas a diferença que há entre um chefe de família conservador e uma alma penada. De modo literário: a diferença entre a revista Cosmopolitan e um poema de Bukowski. Meses depois do concerto de Berlim, Willy volta a consumir heroína e, naquela actuação, naquele palco da Suíça, com aquela canção, acertava contas com o diabo. Se parasse de cantar, escutava uma voz dentro de si a dizer-lhe que tinha uma vida a devolver. E em que estado!… Em estado de culpa, e em estado de quem desperdiçou um dom único que lhe concederam. Aquele rosto, no palco, não é o de um homem. Mas a voz também não. Não é apenas o grave impossível, o vibrato perfeito, a afinação indefectível… Acima de tudo é o além, seja ele qual for, que se apresenta em forma de voz e faz ressoar em nós todo o bem e todo o mal que fizemos e que sofremos, como se estivéssemos na presença da versão contemporânea do filho de deus, incompreendido e trazido à Terra para sofrer, não como todos nós, mas por todos nós. Aquele homem, no palco, quase não consegue andar, quase não consegue falar de tão pedrado que está, de tão arruinada que está a sua vida, mas canta como se fosse uma ave canora. No palco, Willy encarna a Xerazade do Rei Shariar que é quando não está a cantar. Se parar de cantar, mata-se. E, enquanto canta, faz parar a morte. Quase sempre enfrentando-a, enunciando-a.» Acima de tudo, e muito mais do que uma biografia, um ensaio ou um romance, o livro de Jacqueline D. Broussard traça um mapa de obsessões, onde se cruzam as suas próprias com as de Willy DeVille. As da autora são claras: pela voz de Willy, pela sua história trágica, que denuncia uma obsessão pela tragédia – «a tragédia tem um doce encanto como tudo o que nos faz ou pode fazer mal», escreve –, obsessão pela relação de Willy com as suas mulheres (principalmente com as duas primeiras) e pela história do blues. Acerca do blues, escreve: «É lamentável que hoje os jovens afro-americanos vejam o blues apenas como um vestígio da escravatura e não como uma expressão da alma humana. Nesta vida somos todos escravos. Nesta vida, e não há outra, somos o que as paixões fazem de nós. E nenhuma expressão musical o mostra tão bem como o faz o blues. Por isso a letra não é tão importante quanto as notas que se dá, e as notas que se dá não são tão importante quanto o modo como são dadas. É uma expressão, não é uma técnica.» Não sei se de todos os livros que li da «rock reflexion», «O Inquilino» é ou não aquele de que mais gosto, mas é seguramente o que mais me emociona, pelo modo como a autora nos mostra o abismo existente entre a vida de Willy DeVille e a sua voz. Como se ele tivesse sido criado apenas para cantar, apesar de o terem posto na vida. Termino convidando-vos a assistirem aos vídeos e a lerem o livro de Jacqueline D. Broussard.