h | Artes, Letras e IdeiasPrimeiro acto – Cena 7 Gonçalo Waddington - 25 Mar 2021 Gonçalo vai até ao fogão buscar a cafeteira. Regressa ao seu lugar, enche as duas chávenas e pousa a cafeteira no chão. Valério Não precisas de ninguém para te destruir, graças a Deus. Gonçalo Não me estou a destruir. Valério [fazendo beicinho] Estás um bocadinho… Gonçalo Um bocadinho, sim. Valério Pronto… [pausa] Tu és um sapo com cauda de escorpião. Gonçalo Um sapião… Valério Escorpiapo. [pausa] Aliás, és o escorpião às tuas próprias costas. Gonçalo … às costas de sapo. Valério Pois… Ainda nem a meio vais e já te estás a matar. Gonçalo Ela usou um telefone diferente. Valério A minha aluna? Gonçalo Sim. Valério Talvez… [pausa] Já estás a mudar de assunto. Gonçalo Vale mesmo a pena continuar no outro? [pausa] Quando reparou que se tinha enganado, apagou a mensagem. Valério É possível. Gonçalo acende mais um cigarro e oferece um a Valério. Saboreiam a primeira baforada em silêncio. Gonçalo O que significa que ela tinha o teu número noutro telefone. Valério Quis que eu ficasse curioso… com um número desconhecido. [pausa] Se calhar, arrependeu-se e apagou a mensagem. Gonçalo Arrependeu-se? Valério De ter enviado de outro número. Gonçalo E o que é que fizeste? Valério Depois de ter descoberto o mesmo número no site de engate? [pausa] Mandei uma mensagem… Gonçalo Do teu telefone? Valério No site e no telefone. Gonçalo E…? Valério Fiquei a olhar para o telefone… durante algum tempo apareciam três pontinhos, que iam e vinham… mas não recebi nenhuma mensagem. Gonçalo E no site? Valério Nada. Gonçalo E voltaram a ver-se nas aulas? Valério Voltámos. Ela é bastante discreta… e continuou discreta. Gonçalo Hmm… [pausa] E se não era ela? Valério A do número desconhecido? Gonçalo Sim. Valério Era ela. Gonçalo Não gravaste o número. Valério Gravei, pois. Gonçalo Não. Tu disseste que quem quer que tenha enviado a mensagem apagou-a passado pouco tempo… e que viste depois um número no site que te pareceu o mesmo número da tal mensagem apagada. Valério Mas a pergunta era a mesma… o mesmo assunto, a mesma fotografia do quadro com as datas e horários… Gonçalo E?! Valério Só poderia ser de alguém da faculdade… Gonçalo [interrompendo] Certo… mas não sabes se é realmente a mesma pessoa do site. Valério É, é! Gonçalo Não foi isso que disseste ainda há pouco. Valério O que é que eu disse ainda há pouco? Gonçalo Que a fotografia não era muito boa e que não dava para perceber bem como era a cara dela… Valério Mas era a cara dela… e era da faculdade. Da minha faculdade… a única da zona. Gonçalo E quantas alunas há na tua faculdade que possam encaixar naquele perfil? Valério [pausa] Muitas… Gonçalo Pois… Valério Mas é muita coincidência. Gonçalo Muita ou pouca… não interessa. Querias que fosse ela, tinha piada ser ela… pronto. Valério E tu queres muito que não seja. Gonçalo [sorrindo] Os factos não mentem. Valério É isso que fazes a ti próprio… Gonçalo Na escrita? Valério Também… tudo o que tem alguma piada, ou ameaça fugir do teu controlo, cortas. Nada sobrevive. Às tantas, tudo é deserto à tua volta… já nem voltas para trás, sabes lá de onde vieste… e desistes. Tornas a começar de novo, traças um caminho… tudo o que vai rebentando cortas, arrancas, queimas… seja erva daninha ou um rebento de uma árvore… vai tudo a eito… e quando te dás conta de que essas ervas e esses rebentos é que eram interessantes, já é tarde… dás-te conta que estás outra vez no deserto e não sabes como voltar para trás… nem te lembras onde começaste. E volta tudo ao mesmo. Gonçalo [pausa] Já lhe tentaste ligar? Valério À minha aluna? Gonçalo Sim. Valério Mas tu ouviste o que eu acabei de dizer?! Gonçalo Ouvi, pois! Valério E então? Gonçalo Foi a única coisa de jeito que disseste a propósito da minha escrita… Valério Da falta dela, neste caso. Gonçalo Isso… eu pus em causa a tua fantasia, ficaste alterado e resolveste disparar com “é isso que fazes a ti próprio?”. Valério Não foi com má intenção. Gonçalo Eu sei que não… por isso é que eu te perguntei se já lhe tentaste telefonar. Quanto mais falarmos do assunto, mais acutilante te tornas. Valério [pausa] E se eu telefonar e descobrir que não passa de um engano meu? Perco a acutilância e tu perdes um bom crítico. Gonçalo [sorrindo] Mas a tua felicidade é mais importante do que a minha escrita, meu amigo. Valério Mentiroso. Gonçalo Pois sou. [pausa] Vais ligar? Valério Quando chegar a casa. Gonçalo pega nas duas chávenas e na cafeteira leva-as para o lava-loiça. Valério acende outro cigarro e vai ter com o amigo. Encosta-se ao balcão. Gonçalo passa por água as chávenas e depois a cafeteira. A manhã já vai avançada, o dia promete muito sol. Valério Acho que já não durmo cá. Gonçalo Também já não há muito para dormir. Valério Pronto… Valério vai até ao bengaleiro, tira o seu casaco e veste-o. Assegura-se que tem as chaves do carro no bolso. Bate continência ao amigo e sai, fechando a porta atrás de si. Gonçalo volta à sua cadeira e acende outro cigarro.