Artes, Letras e IdeiasPrimeiro acto – Cena 5 Gonçalo Waddington - 11 Mar 2021 Desatam a rir com a declamação de Valério. Quando acalmam, acendem um cigarro e servem mais vinho. Dão-se conta dos primeiros raios de sol que entram pela janela. Valério espreita o relógio e a sua expressão muda. Gonçalo Tens de ir embora. Valério Não devia. Gonçalo Não? Valério Não… Gonçalo O que é que se passa? Valério [hesitante] Troco mensagens com os meus alunos de faculdade… Gonçalo E…? Valério Temos um grupo… professor e alunos… fala-se de tudo e mais alguma coisa. Gonçalo Caramba, estás lento… desembucha! Valério Calma, deixa-me estruturar o discurso. Gonçalo Confessa… não penses muito. Valério Não vou confessar nada! Gonçalo [rindo] Porque ainda não fizeste nada… mas andas com o pecado às voltas na cabeça, seu maroto! Valério Mas qual pecado?! Gonçalo É tão óbvio! Estávamos às gargalhadas… reparaste que o sol estava a nascer, olhaste para o relógio e ficaste nini. Valério Nini? O que é isso? Gonçalo Nini… abatido, melancólico. Os teus alunos não usam essa expressão, nini? Valério Mas o que é que isso tem que ver com pecado? Gonçalo Tem tudo. Tens alguém em casa à tua espera… e tu aqui, a estas horas… pecado! Que eu saiba não vives com ninguém, portanto… Tens trabalho atrasado e tu aqui, a cavaquear e a emborcar à grande… pecado. Valério Culpa, queres tu dizer. Gonçalo Neste caso é a mesma coisa. Andas a trocar mensagens com quem não deves… continua. Valério Não é bem assim. Gonçalo Só pode ser isso… ficaste nini. Perguntei porquê. Disseste “troco mensagens com os meus alunos”. Valério Mas foi um engano… eu troco mensagens no grupo, mas também troco mensagens em privado. E são eles que me mandam mensagens… a propósito de trabalhos, ou exames, ou o que for… Gonçalo E? Valério Calma! [pausa] E… eu escrevi no quadro da sala os nomes e os horários de apresentação de uns trabalhos quaisquer, tirei uma fotografia e enviei para o grupo… apaguei o quadro e fui-me embora. Ao fim da tarde começo a ser bombardeado com mensagens no grupo… enganei-me, pelos vistos… havia duas apresentações à mesma hora, num mesmo dia. “Enganei-me, peço desculpa, fulano ou fulana tal apresenta na aula seguinte e não no mesmo dia, se estiverem de acordo”, respondi. “Tudo ok”, responderam eles… passadas umas horas recebo uma mensagem de um número que não tinha gravado… a mesma fotografia, com a mesma pergunta “Não se terá enganado?”… não respondi, não conhecia o número. Mas fiquei curioso, voltei a espreitar a mensagem e quem a enviou já a tinha apagado. Gonçalo [rindo] Estás a inventar! Valério Não estou! Gonçalo Para já, é uma seca! Uma sequência de factos insípidos… depois enviei isto, depois eles responderam aquilo, depois eu fiz não sei quê, depois eles fizeram não sei que mais… Ainda por cima, és monocórdico e deixas todas as frases suspensas… e tararará… e tararará… e tararará… não há paciência! Valério [levanta-se] Bem, vou-me embora. Gonçalo Oh, vá lá… Valério vai até ao lava-loiça e começa a lavar o seu copo. Gonçalo Agora vais tu fazer birra? Valério aproveita para beber água, volta a lavar o copo e deixa-o a escorrer. Vai até ao bengaleiro e veste o casaco. Põe-se a revistar os bolsos. Gonçalo Acaba lá a história. Valério Não! Valério continua à procura de qualquer coisa nos bolsos do casaco. Gonçalo Não podes conduzir assim. Valério Sem chave, não. Gonçalo Vá, sentas-te, não bebemos mais e daqui a pouco vais embora. [pausa] Começo já a fazer o café. Gonçalo vai até ao fogão de ferro e pega na cafeteira. Valério torna a tirar o casaco e a pendurá-lo. Põe as mãos nos bolsos das calças, contrariado, e descobre a chave do carro num deles. Gonçalo desatarraxa a cafeteira e passa-a por água no lava-loiça. Valério volta a sentar-se. Gonçalo Continua… Gonçalo põe o café, atarraxa a cafeteira e põe-na ao lume. Vem sentar-se ao lado do amigo. Valério Peço desde já desculpa pelo conteúdo e pela forma… [pausa] Atalhando… umas horas depois, estava eu num site de engate… já me tinha esquecido do assunto… Sabes que as procuras podem ser baseadas em proximidade, certo? Local de trabalho, casa… Gonçalo Sei, avô! Valério Pronto… nos critérios de busca, para além do género, idade, interesses… tenho o local de trabalho. Não pus a faculdade, pus a zona, como é óbvio. Gonçalo Porquê? Valério Porque não quero que saibam onde trabalho. Gonçalo E a profissão? Valério O que é que tem? Gonçalo Tens a profissão no teu perfil? Valério Tenho. Gonçalo Professor universitário? Valério Sim. Gonçalo Então, se és professor e trabalhas na zona tal… Valério [interrompendo] É óbvio! Mas não está lá o nome da universidade, não me apetece, pronto. Continuando… às tantas aparece-me o perfil de uma mulher… jovem… a fotografia não era muito boa, não dava para perceber bem como era a cara dela… acho que deve ter posto aquela fotografia de propósito, para não ser reconhecida… era uma aluna universitária ali da zona e tinha o número de telefone. Quando vi o número, percebi que era o mesmo da mensagem que tinha recebido e que entretanto tinha sido apagada.