Novas dos icebergs – 2

Não há novas nítidas das fissuras a evoluir. Não chegam aqui os estertores do rasgo na carta dos gelos. E dos icebergues suicidas, que me emocionam desde que vieram notícias. Que se desprendem sem querer da mão gelada de que são parte e derivam para paragens estranhas, como elefantes para morrer sós. Mas nunca tão sós que não sejam espiados pelo voyeurismo satélite, das agências internacionais, a ver morrer. Alguém, na televisão, aproxima-se numa vertigem, da janela. E recua. Eles não têm caminho de volta. São como crianças enormes, sem culpa da força que têm. Mil quilómetros quadrados, a libertarem-se sem querer. A quebrar numa linha de fronteira, de desenho inédito e silenciosa nele, a configuração de um mapa. Gelo de ninguém. Para degelo futuro.

Deixar o mapa em cinzas azulados e voltar a Marte. Um pouco como ir e voltar. Ou como sonhar e acordar, sonhar e acordar. Olhares, como aquele que distraidamente se lança de manhã ao aquário de peixes exóticos para verificar que tudo está como na véspera, cintilante, movimentado, colorido e indeterminável. Hipnótico. Eles, nos seus circuitos fechados e sem saída, senão para a morte. Uma predestinação que já vem da loja.

E as florestas húmidas, de chuva tropical, de um planeta com estações e uma natureza de cortar a respiração, por momentos esquecidas quando sonhamos com os monitores virados para Marte. Aquelas de que todos dependemos, a ser depauperadas por interesses privados. A precisar de um lirismo de sustentabilidade, a dar o nome a um brinquedo qualquer que voe e faça esquecer a ganância e o lucro. E milhares de milhões em qualquer moeda forte, como nos programas espaciais. Para criar miríades de satélites, a nova moda em constelações. Monitorizar. Pouco evoluímos em termos civilizacionais, com este voyeurismo científico. Podia pensar, por analogia, na moda do “birdwatching” que veio substituir para alguns predadores a cultura da caça. Mas não consigo deixar de pensar que de tanto se observar, nunca chega o tempo de actuar. E ficaremos, lá mais para a Primavera, de olhar embevecido a contemplar a evolução do pequeno helicóptero, um brinquedo que vai ensaiar o primeiro vôo durante um mês marciano de trinta dias. E cujo único desígnio será sobreviver. A sua alma de brinquedo não o sabe – e por isso o nome – mas não tem outra missão de vida. Como a verdadeira ingenuidade. Que pode ser uma forma de avançar, mas em que a verdadeira questão secreta, será sempre se consegue resistir à manipulação, à maldade ou ao cinismo.

Talvez o pequeno helicóptero tenha mais hipóteses, com a sua sofisticação tecnológica. Mais preparação do que nós que tão pouco investimos nisso e na sustentabilidade do planeta, dos valores. Mas a ingenuidade, diz José Luís Peixoto: “(…) faz o sangue circular com mais fluidez do que o cinismo. A ingenuidade desconhece o colesterol. O cinismo é hipertenso.”. Não sei se tem razão porque às vezes dói tudo. A taxa de mortalidade é grande e pode ter outras razões. Livros cheios de nomes possíveis para as coisas. O contrário de inocência. É terrível nomear.

Deixamos para trás os icebergues deprimidos e desistentes e esta terra em colapso lento e visível. Esta poética em cinzentos azulados ou em verdes húmidos e ricos.

E Marte, esta curiosidade com tanto de subliminar porque o espaço é alheamento. A crença do inabalável que parece tapar-nos os olhos. O presente a que queremos fechar os olhos e Marte, a adivinhação do futuro.

Ficámos naquela pergunta ingénua centrada numa camada poética da realidade dos nomes. Bonitos, concordámos. A dar que imaginar, impregnados de inevitabilidade. Ingenuity. O pequeno helicóptero, que vai soltar-se do ventre tecnológico do rover Perceverance e cujo desígnio é, somente, sobreviver. Testar as possibilidades de sobreviver à temperatura drástica e negativa. Engenho pequenino, de menos de dois quilogramas com patinhas delicadas de insecto e umas hélices para redemoinhar sobre a cabeça, fará justiça ao seu nome de baptismo. Não saber mas acreditar ou o contrário, quer tenha sucesso quer não o tenha. Porque o grande desafio da ingenuidade em si, é sempre: não onde chega, mas até que ponto sobrevive.

Fico a pensar na perversidade do nome mesmo para um objecto. Um anjo tecnológico que vai voar. Ou é animismo, questionar a razão de se fabricarem anjos. Estas coisas de sonhar. Asas de desejo, que são as coisas terríveis da infância e as únicas que vale a pena não desistir de sonhar, realizar e deixar chegar a adultas como nascidas aí. E de novo sentidas, sonhadas, vividas e realizadas. Ir a Marte. E voltar. Sonhar em companhia. Na idade dos mapas. Depois da solidão desfocada ou impensada, da infância.

“Que me sinta, ainda hoje, ingênuo e imaturo (quer dizer, somente com os defeitos da juventude e quase nenhuma de suas virtudes) não significa que eu tenha o direito de exibir essa ingenuidade e essa imaturidade.”. Diz Mário Benedetti a fazer-me pensar na inutilidade de todas estas palavras.

Lindo, isto dos nomes Ingenuity e Perceverance, concordamos. Mas é o do helicóptero e talvez porque voa e traz devaneios, em que me detenho mais. Se a ingenuidade é perigosa, quando é matéria pura de sonho. Quando assestamos o olhar para mais longe, sem saber mas a acreditar. Como nos verões da infância para papagaios de papel e aviões pequeninos de precário motor. Nesta fuga em frente e para o espaço longínquo deixando para trás o que assim se assume irremediável. Este planeta preterido em função de uma fuga futuramente possível. A realização de um sonho qualquer.

Se eram lindos. Os nomes. Sim. Diz um de nós. Não importa qual. Mesmo se discordamos. O que é relevante: esses dois monitores diante do olhar, dois olhares. Que num momento qualquer se cruzam. Pensamentos que se encontram por dentro, nesse infinito e infinitamente intangível, para ambos os lados da interface dos olhos. Neste silencioso ir a Marte.

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