O abraço

Me abrace, que no abraço mais do que em palavras, as pessoas se gostam.
Clarice Lispector

Se é para escrever sobre os dias então que seja dito: a coisa tem sido difícil, desgraçada, às escuras. E de tantas maneiras e todas más: a incerteza, a insegurança, a distância, a ausência de tudo: de quem amamos, de nós, das rotinas, do dinheiro. Falo por mim, que tudo isto me bateu à porta e ainda se senta à sala. Não há como fugir e apenas se pode estar grato que o essencial ainda nos habite. Aquele velho adágio e final de discussão que tantas vezes trocei ganhou uma verdade ainda maior que já tinha, para minha vergonha: “Saudinha é que é preciso!”, diziam-me os mais velhos quando eu era imortal. E eu concordava hipocritamente sabendo que era precisamente a saudinha que desejava desperdiçar. Agora já não rio e digo exactamente o mesmo a quem me rodeia. Sem ironia nem displicência, infelizmente.
Mas uma vez compreendido o essencial desta sabedoria fico com ainda muito por resolver. O mundo muda e eu não, ou pouco. Pela primeira vez percebo que a vida vai em excesso de velocidade para quem como eu gosta de registar as paisagens. Mas o que fazer, amigos? Num ano em que os obituários se sucedem, resta viver e tentar não ficar preso aos inventários das perdas.
Infelizmente não consigo, por feitio ou convicção. E reparo mais no que me falta do que no que poderei ter. Coisas pequenas, por vezes, mas que crescem como flores selvagens e inacessíveis. Pequenos gestos que se engrandecem pela sua ausência – pelo menos a ponto de servirem de pretexto para estas palavras.
Finalmente aqui chegados, peço: considerem o abraço. Gesto simples, outrora rotineiro e tantas vezes esperado. O abraço foi-nos tirado, amigos. Esse amplexo lindo e inocente que tanto serve um romance como uma amizade. Essa vontade definitiva de tocar quem estimamos ou amamos, esse “amor envergonhado” que sinaliza de forma visível as amizades ou reitera de forma casta quem desejamos. Por Deus, até os alemães – povo não dado a grandes extroversões afectivas – possuem o provérbio que diz, mais ou menos, que um abraço por dia mantém os demónios longe.
Nestes dias, o abraço passou à clandestinidade. O novo protocolo sanitário aceita toques de falanges, metatarsos ou articulações sortidas mas proíbe o abraço. A prova desta afirmação é fácil: experimentem abraçar alguém em público, sem medo e de forma acolhedora e ireis ter ao vosso redor olhares que não deveriam lá estar. Sei do que falo porque sou um abraceiro convicto e enquanto ninguém me prender não me inibo de pôr os braços ao redor dos meus amigos, em público e sem medo. Mas que sinto o peso dos olhares de censura à beira da denúncia- ui, isso sinto.
Abraçar, uma das saudações mais humanas e bonitas, transformou-se num acto de resistência. Mas por favor compreendam: não estou aqui a incitar o desprezo pelas regras de saúde pública. Apenas exaltar algo que não quero que desapareça, que quero que regresse com urgência. Por favor, não me façam escrever o obituário do abraço porque nesse dia desistirei de ser humano.

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