A Santa Casa do desprezo

[dropcap]H[/dropcap]á cerca de uma hora estive a ouvir de um amigo uma história tão triste quanto mirabolante. É sobre o Portugal que temos e que em parte justifica que eu vos escreva semanalmente aqui de longe e onde a pandemia está cada vez pior. O meu interlocutor começou por ser enxovalhado pelos amigos quando lhes anunciou que iria escrever um email ao primeiro-ministro António Costa. Foi a risota geral e a chacota com contornos políticos.

– É pá, mas tu deves andar doido. Escrever ao primeiro-ministro à espera de teres uma resposta é a mesma coisa que te saírem os números do euromilhões…
– Eu tenho mais que razões para lhe escrever porque é o representante de todo o povo.
– Mas ó meu, tu ainda não percebeste que o Costa tem milhares de emails no computador de chatos como tu e que vai tudo para o lixo porque o homem não tem tempo nem para se coçar e muito menos para aturar a Catarina Martins e o Rui Rio, não percebes?
– Não, não percebo, porque o meu caso é grave e ele já disse por várias vezes que está sempre preocupado com os pobres. Vocês não se esqueçam que a minha reforma são duzentos euros, não tenho apoio social do Estado, tenho a minha mulher muito doente, não tenho dinheiro para medicamentos nem para tratamentos e exames médicos que ela tinha de fazer e há dias que comemos uma banana…
– É pá, desculpa lá, mas não te queria ofender. A malta tem de se reunir para te ajudar… mas fazes bem em escrever-lhe e mete na tua cabeça que nunca terás uma resposta…

O amigo lá conseguiu encher-se de coragem e enviou uma missiva ao chefe do Governo, tendo explicado a sua situação vivencial praticamente abaixo da pobreza, salientando que há meses que não podia pagar a renda de casa e que os vizinhos lhe têm pago a água e a luz. Que a reforma era baixíssima e que os remédios eram caríssimos.
Qual não foi o seu espanto, quando passados quatro dias, recebeu na sua caixa de correio electrónico uma resposta do próprio primeiro-mistro a transmitir-lhe que o seu caso iria ser resolvido.
Passada uma semana, o “novo” amigo de António Costa recebeu um telefonema do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.

– Está lá!?… Fala o senhor…
– Sim, sim!
– É por causa daquele assunto que o senhor colocou ao senhor primeiro-ministro e nós recebemos aqui no Ministério instruções para que ao seu caso fosse dada a maior atenção. Queremos dizer-lhe que em breve irá receber um contacto sobre o assunto…
– Muito obrigado pela atenção e agradeço a vossa generosidade.

Passaram-se duas semanas e o seu telefone tocou:

– É o senhor…
– Sim, sim!
– Daqui fala a doutora… da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa… Estou a ligar-lhe por causa daquele assunto que colocou ao senhor primeiro-ministro…
– Sim, eu sei. Uma funcionária do Ministério da tutela para casos deste tipo já me tinha avisado que alguém me haveria de contactar para se resolver o assunto…
– Pronto, isso mesmo! Agora diga-me qual é o seu email para lhe enviar uns dados a que terá de responder e depois aqui na Santa Casa será tomada uma decisão…
– Agradeço muito a vossa atenção e aguardarei o seu email.

Dois dias depois, o cidadão cheio de esperança que melhores dias viriam, recebeu um email da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Começou a ler atentamente e achou logo que o texto era maior que um discurso do Presidente Marcelo… continuou a ler e a tentar entender o que estava escrito, mas simultaneamente a sua boca ia ficando aberta de espanto e o coração cada vez mais desalentado… no final da leitura tinha que acreditar que a burocracia na Santa Casa é maior que a Torre Eiffel. A Santa Casa exigia dezassete (17), leiam bem, dezassete documentos e declarações juntamente com o formulário que requeria apoio social. Dezassete documentos? – indagou-se o cidadão – e ainda por cima não era apenas a identificação da sua mulher, a dele, números ficais, números do Serviço Nacional de Saúde, declarações de IRS, não, havia documentos que exigiam que a pessoa, que está praticamente acamada, se deslocasse ao Banco de Portugal e às Finanças. Ao Banco de Portugal para solicitar uma declaração de que não possuía imóveis… e nas Finanças tinha de obter uma declaração de que não possuía rendimentos extras aos declarados. O indivíduo quase enlouqueceu e perguntou a si próprio se no IRS não consta tudo sobre um cidadão. E o caricato é de tal forma que se um pobre tivesse imóveis, a primeira coisa que faria era vendê-los para poder sobreviver… o absurdo estava patente naquele email brutal e esfaqueador.
O cidadão que se considera educado, voltou a enviar outra missiva ao senhor primeiro-ministro a agradecer a sua pronta gentileza e atenção pelo seu problema, mas que tinha acabado de esquecer para toda a vida a instituição Santa Casa que gere milhares de milhões e que tinha exigido dezassete documentos, quem sabe, para um possível subsídio de 100 euros…

*Texto escrito com a antiga grafia

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