O Jornal Único

[dropcap]A[/dropcap] comunidade portuguesa de Macau não quis ficar fora das celebrações do quadricentenário da chegada de Vasco da Gama à Índia (1898), mas os festejos cívicos revelaram-se muito contidos, devido a uma outra peste que nessa altura grassava, um surto de cólera. Ficámos só com o busto no jardim hoje que leva o nome do almirante, nos limites da cidade oitocentista. Localmente, as comemorações do centenário do Gama foram lidas como a oportunidade ideal para a afirmação do poder central na colónia, através da homenagem da comunidade às figuras do malogrado governador João Ferreira do Amaral e do militar Vicente Nicolau de Mesquita, que tomara o forte de Passaleão, hoje parte de Zuhai.

Um outro resultado material destas comemorações foi a publicação do curioso Jornal Único (1898), bem uma obra do nacionalismo finissecular. Revista, mais do que jornal, e de número único, neste Jornal Único ouvimos sobretudo a voz de uma comunidade intelectual ultramarina misturada com a de alguns euroasiáticos, como o próprio organizador António Joaquim Basto. O triplo nome “Camões–Mesquita–Amaral”, monumentalizado como um pedestal para o Gama, aparece no frontispício da revista e em quase todos os textos da mesma, sublinhando a continuidade entre esses dois pares: de um lado o fautor da autonomia de Macau face à China e o seu garante; de outro o nauta e o seu cantor.

Trata-se de um grande e luxuoso volume, ornado de fotografias e impresso num papel especial. Nesta antologia, quase toda constituída de textos de circunstância, o louvor do passado só faz sentido à luz da necessidade de renovar o colonialismo português, que era o programa ideológico subjacente às comemorações deste centenário. Nesta conjuntura, é dada especial relevância à posição de Macau, que em “Praia Grande” de António Joaquim Basto, a esse tempo Presidente do Leal Senado, é descrito como colónia “quasi perdida” (p. 14). O clima de estagnação que faz da Cidade do Santo Nome uma terra “anémica e sem forças para robustecer” (p. 14) atravessa também, de uma forma elíptica, textos mais surpreendentes, como um duplo soneto de Pessanha que aqui se encontra.

Embora Camilo não pertença à comissão para as comemorações do Centenário e se furte a proposições daquele género, faz claramente parte de um mesmo esforço coletivo mobilizado pelos portugueses na China em torno das celebrações, ou não participaria nesta empresa de todo. “Nau San Gabriel”, com o subtítulo parentético “No quarto centenário do descobrimento da Índia” [sic], dá a ver Portugal, na calmaria pós-ultimato, através da alegoria de uma nau parada: “Inútil! Calmaria. Já colheram /As vellas. (..)Pararam de remar! Emmudeceram!”. É daqui que vem a necessidade de de novo retomar os ritmos marítimos, numa segunda viagem ou descoberta: “Velhos rithmos que as ondas embalaram). // San Gabriel, archanjo tutelar, (…)/ Vem-nos guiar sobre a planicie azul. //Vem conduzir as naus, as caravellas, /Outra vez, pela noite, na ardentia, /Avivada das quilhas. (…)/ Outra vez vamos!” (p. 14)

A nau-pátria é um tema alegórico do imaginário finissecular e que aparece em muitos outros textos da época. Assim se entende que o soneto é uma glosa aos motivos oficiais, heroicos e marítimos, do centenário da Índia, no espírito do nacionalismo cultural de perfil republicano. A Nau-Capitânia, imagem da nação, necessita de uma intervenção quasi-divina para nova travessia regeneradora, cujos contornos são tão nebulosos quanto a visão que o poeta e seus coevos tinham do futuro de Portugal. Ao contrário do que alguns críticos têm dito, esta contribuição de Pessanha para o movimento de despertar nacionalista é cristalinamente nacionalista, embora com alguns ecos de vencidismo, contudo insuficientes para infirmar o objetivo bem como o valor e sentido do contexto da sua publicação.

É precisamente o conhecimento do contexto de Macau e da produção em língua portuguesa feita em Macau, que aqui fazem a diferença na interpretação deste poema. E assim, apesar de o soneto parecer acusar a tese de Oliveira Martins – que impregna a literatura tardo-oitocentista – da crise nacional enquanto forma insuperável de estagnação, este poema de alguma forma inaugura a ideia que Pessoa retomará uns anos mais tarde das “Índias Espirituaes”. Esta singular ideia cinge-se a isto: as novas descobertas a fazer não serão já nos mapas físicos, mas antes nos mapas mentais, culturais e “espirituais”, ideia que o ortónimo dará corpo em Mensagem e em centenas de fragmentos ensaísticos. Mas é o discreto soneto de Camilo Pessanha que permite dar a Macau e à produção aqui feita pelos portugueses um lugar central na genealogia de uma ideia que ecoará ao longo do século XX, a de um “imperialismo cultural”, na formulação de Fernando Pessoa.

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