Artes, Letras e Ideias Diários de Próspero hDuelo ao Sol: Barcelona 5 – Real Madrid 1 António Cabrita - 7 Out 20204 Dez 2020 [dropcap]F[/dropcap]ixei uma antologia que sairá em 2021. Há sempre textos de que se têm pena que não estejam no lote dos salvados, como estes quatro: NA VERDADE NÃO PODE HAVER UM ARMISTÍCIO Na verdade, que armistício entre o que fui e o que sou? Fui pedra, fui fisga, fui uma lâmina intrometida entre o selo e a carta, fui aquele relógio que aparvalhou o Stockhausen, capaz até de florir. E fui quem que se esqueceu de retocar as cabrinhas de Giotto meio delidas, porque me entretive com a filha do curandeiro; e fui, meu Deus, o ignorante que não compreendeu que a poesia é o que na ciência se chama “um atractor estranho” – uma orelha para onde converjem cerejas. Nada disso me amnistia: nunca me alistei na imensa vaga dos que anseiam pertencer, fundir-se, nem quis amarrar-me ao amor como se amarra ao cachorro um jardim que ele arrasta em corrida. Todavia que armistício, se me converti à clorofila? Se derrotar os hábitos é o mais difícil (cresça a criança entre ervilhas e julgar-se-á um gafanhoto) tinha o dever de lembrar: nenhum medíocre é inocente! Vivo num país onde o riso é privado, embora o escândalo seja universal: não sairemos vivos dos incorporais com que engomamos os colarinhos do tempo. Quem nos arranca à automoribundia do alheamento? Como pude esquecer-me que só respiramos no singular, que os pais de Sócrates se chamavam Sofronisco e Sefarete, e que, isso não lhe bastando, arranjou uma mulher com nome de palha-de-aço: Xantipa, onde depositou três ovos: Lampoclés, Sofronisco (um júnior, quem diria?) e Menexeno (a ferrugem que dá às algas). Depois deste descalabro (bem sei que em grego), aonde poderia o pensamento conduzi-lo senão ao cárcere? Ser campeão de pingue-pongue aos oitenta, poderia ser um desígnio, declarado, apesar de ser sabido: os hamsters são reféns do destino. Mas o que fica é isto: não fui suficiente incisivo a lembrar que nenhum medíocre é inocente! MESSI E RONALDO: DUELO AO SOL Pende-lhe a franja sobre uns olhos de ratinho almiscarado – a fraca figura. O outro é só peitaça, o cabelo em crista, é esplêndido – em brilho e manicura. Mas no combate é Aquiles o primeiro e o segundo Heitor. A assistência a Di Maria foi um primor de engenharia, o segundo foi já assinatura. É uma pepita Cristiano, na orbe dos terrenos, mas Messi é selenita e precipita a sua alma na rota dos Deuses. Há que ter calma, não humilhar mais o madeirense, ainda um astro na sua ilha mesmo que não mais que um amanuense no universo. A glória é só uma, para quê insistir na vilania de ver Cristiano depenado pela melancolia? Abriram-se-lhe as pernas de espanto ou susto? O treinador é que o topou e por isso o tirou, estava o herói embargado – assim ao menos caiu calçado. Sempre que Cristiano encontra o argentino confunde os hinos e diante d’el gran sedutor a ialma lhe falece como o sangue a Heitor: Olé, olá, olé, olarilolé! OS PONTOS NEGROS QUE NOS MAPAS INDICAM OS CEMITÉRIOS Subia as escadas a matutar na urgência de despachar as provas do livro da Hilda Hilst, quando ouvi salmodiar. Tinha quatro anos. Uma menina. Bonita e airosa como a mãe. Morava no 12º andar e encontrava-as na escada, borboletas arquejantes, lamentando sorridentes a eterna avaria do elevador. A menina era propensa às laringites e decidiram operá-la. Jaz agora na hirta rigidez da tumba. A operação degenerou em espíritomiríade e tornou-lhe avaros os dedos, prometidos a búzios e pianos. A mãe lembra agora uma formiga preta consumida por dois canhões nos olhos. Negligência médica. Foi o mês passado. O de hoje tinha treze anos. Era tão gordo que na sua alma ouviam-se os batuques que afastam os hipopótamos. Mas era um bom menino, amigo dos seus amigos, e estivesse o céu crivado de estrelas ou de chuva não faltava aos seus deveres de guarda-redes. Na véspera de começar a gabar-se “gosto de estar entre miúdas nices” (desconheço se tinha o afinco para isso), deslocou um pé. Coisa mais grave quando se não é mais leve que um cedro libanês. Vi-o três vezes a arrastar-se com o gesso para descer ou subir ao quarto andar, a mãe no comando da operação de desmantelamento & resgate, e desejei-lhe as melhoras. O gesso foi mal colocado. Provocou uma ferida que gangrenou. Depois o sangue tomou antenas invisíveis e a locusta decapitou-o. Há quatro dias que se sucedem os cerimoniais, e até os degraus da escada se consternam sem saber que fazer sem todo aquele pólen que o miúdo carregava. Deus, nestas paragens, tem mais mortos que dentes: eis o desdentado padrão, em fundo. AS COISAS QUE IMPORTAM As televisões anunciam: revólver de Al Capone leiloado em Londres. E eu em Maputo. Serei sempre como a figueira, molenga, uma alma que é uma espelunca-de-aluger e incapaz de frutificar a tempo de ter as raízes pisadas pelas olorosas sandalinhas de Cristo. Já perdi por um fio a guilhotina de Robespierre, um tufo da melena de Hitler, uma sela marchetada a marfim de Bush, o texano, um selo exortativo da Grã Perenidade de Mugabe e dois botões de punho de Kadhaffi. Só nos últimos 6 meses. É isto, sem nada para deixar aos filhos. Talvez um 123 para porem as farófias no ponto, mas, é lá o mesmo! A minha vida deslaça sem que eu adira, ainda que simbolicamente, a um crime de monta, uma crueldade com estardalhaço que vergue de medo a própria sombra. Que tristeza ó minha mãe, que me erodiste a ruindade: eis-me um podengo do bem! Uma revoluçãozinha, onde eu pudesse fuzilar os refractários e alguns poetas mais burgueses! Chamava-lhes um figo. Hum! Não há aí quem queira leiloar esta minha incapacidade para estar onde as coisas que importam acontecem? Eu vendo, por muito dinheiro!