Artes, Letras e Ideias hO momento de felicidade António de Castro Caeiro - 24 Set 2020 [dropcap]A[/dropcap] filha de Clarisse, no filme “As horas”, pergunta-lhe qual tinha sido o momento mais feliz da sua vida. Depois de algum tempo de reflexão em que tenta lembrar-se, responde-lhe. Ou terá respondido logo? Disse-lhe que sabia. Tinha sido há muito tempo. Como o tempo passa! Nem percebemos como, pela sua passagem, morrem não só pessoas como desaparecem coisas. Épocas inteiras são apagadas da face da terra para emergirem à superfície da consciência na sua ausência, quando nos lembramos delas ou elas nos aparecem sem saber como, vindas não se sabe de onde. Acenam-nos de lá de onde têm estado ausentes, numa presença fantasmagórica, morto que tudo está. O lado de nós que assiste a essa ausência está presente e dá conta de que tudo isso que agora nos aparece tem estado desaparecido e que estão mortas as pessoas de que nos lembramos tão vividamente que dá a sensação de que estão vivas. Mas é só a sensação. O lado de nós próprios que esteve imerso na vida com tudo o que desapareceu já não existe. “Eu sei! Eu sei. Foi há anos”. A resposta obriga a um mergulho. Clarisse sonda a vida que viveu. Não será já feliz ou não sabe se ainda o é, se o foi. Saber-se-á sempre quando se é feliz? Sente-se a felicidade muitas vezes por causa de coisas que existem e que nos acontecem. Outras vezes sente-se a felicidade, sentimo-nos felizes: o facto de se estar vivo. É por causa do sentir-se feliz que qualquer conteúdo está ganho. A felicidade projecta-se sobre nós, e tudo, toda a gente, todas as coisas são atingidas. É uma atmosfera em que se está mergulhado. O clima certo em que se caiu. A felicidade é volátil, volúvel, gasoso, inconsistente, momentâneo, incontrolável, existe independente como um capricho dos deuses ou só da meteorologia. “Já fomos jovens”. “Era eu jovem”. A filha escuta e olha para Clarisse com atenção. Sabe lá ela o que é a felicidade. Sabemos lá nós o que é a felicidade da nossa mãe. Sabemos lá nós o que é a nossa mãe uma miúda jovem. Nem quando vemos uma fotografia da nossa mãe recém-nascida vemos uma menina. Vemos sempre uma metamorfose. “Mãe, estás a dizer que foste jovem um dia”. A juventude é uma atmosfera temporal, uma época da vida. Não foi para lado nenhum. O tempo não vai para espaço nenhum. O tempo vem do futuro e do presente vai para o passado. Há, contudo, uma data de vivências que se soltam do passado e chegam até nós no presente. Há locais que só existem geograficamente mas já não podem ser frequentados. Há pessoas que não vemos há tanto tempo. Há os mortos. O tempo em que outrora coincidimos todos vivos é breve, brevíssimo. A felicidade não é um estado de espírito. Não existe estagnada. Não é também só uma emoção nem é um afecto. É um sentimento. Faz-se sentir a partir de si. É um horizonte que se abre. Pode estar ligada a pessoas, com as quais partilhamos a vida. A ser com outros tudo muda. Não se sente o tempo a passar, pois sente-se haver futuro. “Lembro-me de uma manhã”. “Acordei cedo com aurora”. “Havia aquele sentimento, sabes?” O sentimento de possibilidade. Lembro-me de pensar de mim para mim: “Então é isto o princípio da felicidade”. “É agora que a felicidade começa”. Naquele momento, em que pela primeira vez se sente a felicidade o futuro acena-nos e antecipamos a sua possibilidade. E foi isso, então, nessa altura. A felicidade era e foi só isso. Um aceno do futuro como futuro, o sentimento da possibilidade que nos deixa antecipar a sua própria possibilidade. Não havia mais nada, porque tudo o que havia existia na atmosfera desse sentimento. A felicidade foi aquele momento impermeável a qualquer conteúdo ou talvez dependente apenas da juventude, o tempo da possibilidade, a encharcar a praia, a casa de férias de Verão, os outros todos que ainda estavam a dormir mas viriam para a praia, a tarde, o serão.