h | Artes, Letras e IdeiasHá os homens João Paulo Cotrim - 2 Set 2020 Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 13 Agosto [dropcap]O[/dropcap] mundo não acabou para a Notre Dame de Paris, mas algo se perdeu nas chamas. Assim o mundo rural não acabará, apesar de morrer a cada verão incendiado. Se nas ondas revoltas se naufraga, que palavra espelha o afogamento em mar de chamas? Ardência? Nem todos os finais são abruptos, há formas de ir soltando ser, deixar pele nas silvas, aguentar o amargo do fracasso, o fel da injustiça, a banalidade da desorientação. A Notre Dame não perdeu o seu anjo, aquele que sopra trompa como continuação do corpo, seta disparada ao chão na vez de atirada aos céus, e assim se toca anunciando, a graça ou o fim. Aquando do incêndio do ano passado circularam fotos nas quais com olhar se infantil se vislumbrava anjo de fumo abraçando o pináculo em chamas, figura interpretando o tema derradeiro do instrumento. Blaise Cendrars não desdenharia a potência da imagem, a profecia do gesto. Afinal, já no final de outro século, em 1917 (o século extingiu-se na Grande Guerra e não na folha do calendário) nos dava a ver «O Fim do Mundo Filmado pelo Anjo N(otre) – D(ame)» (edição da Assírio & Alvim, com tradução de Aníbal Fernandes). Os desenhos de Fernand Leger no original fazem paisagem com corpos e letras, palavras, fazendo com elas catedral, cidade, caos. Desfazendo o cima e o baixo, as orientações e os sentidos, brotando em cores básicas do vale das páginas. As letras são estilhaços do fim do mundo. E o Anjo ergue-se sobre o seu sopro, desloca-se empurrado pelo som. Blaise intuiu que o cinema havia acabado de se criar para registar o epílogo, como a revolução foi televisionada e este apocalipse quedo brotou das redes e do santo algoritmo. Mas aquele mundo de antanho havia de ser superprodução com figurantes sem conta e a natureza a recriar-se perante os olhos dos espectadores por haver. No tradicional lugar comum do finamento a vida de cada um passa-lhe em filme, revisão da matéria vivida. Neste do Anjo N.-D. tratou a natureza de se rever em jogo de formas geométricas e orgânicas. «Tudo espirra. Tudo se mistura. Pan. Demónio. O mar oleoso, pesado como asfalto. A terra enegrecida, sangrenta, a liquefazer-se. As ondas transformam-se em montanhas e os continentes afundam-se. Torvelinho.» O crescendo termina quando «o último raio de luz corta o espaço caótico como a barbatana de um tubarão…» Cabe à luz, parceira do verbo nos inícios bíblicos, o papel de ultimar. Um fogo largado à aparelhagem põe o filme a correr às arrecuas. E o Deus-pai de todos os princípios e também deste fim do mundo regressa, capitalista de charuto e automóvel de luxo que havia espoletado tudo com uma grande feira de religiões em Marte. Retrato dos dias nossos nos dai hoje, veja o leitor se não somos de Marte. «A multidão dos Marcianos comprime-se à frente da cavalgada. Vemo-los nas bolas de sabão que lhes servem de habitáculo, como imponderáveis fetos metidos em frascos. Matizam-se como camaleões e adquirem cores, de acordo com os sentimentos que os agitam.» Só que Deus excedeu-se e a feira apresenta-se «demasiado vulgar», uma orgia de anúncios e música em altos berros, o horror dos espectáculos, de certas cenas, dos sacrifícios dos animais, a repugnante exposição dos mártires, a fixidez das máscaras, a crueldade das danças, «todos os meios ferozmente sensuais explorados nesta grande parada das religiões» assustam os marcianos que fervem e explodem empurrando Deus para o deserto onde resolve concretizar as profecias. O homem certo para o «trabalhinho» é o da câmara de filmar, que assim começa a descrever-erguer a cidade-mundo . Aliás, as cidades ajuntam-se frente a Notre Dame de Paris até que o Anjo incha as bochechas. «Tudo o que os homens construiram desaba imediatamente sobre os vivos e soterra-os. Só que ainda tem um resto de vida mecânica resiste mais dois segundos. Vemos comboios andar sem comando, maquinas rodar em vazio, aviões cair como folhas mortas.» Depois o cinema, «acelerado e ao retardador», o da natureza. São frases curtas, lâminas em torvelinho. Descrições exactas, que me fazem hesitar entre Godard e Malick para assistentes de realização. Desnecessários, que o texto revela-se bem, boa companhia neste deserto atravessado a nada. Blaise pariu-o de jacto, «a minha mais bela noite de escrita», sem emenda nem remédio, para nunca se desfazer em luz projectada. Além do brilho próprio, claro. Tinha 30 anos, era editor e estava a fazer contas à vida. «Hoje, que já não acredito em nada, a vida não me suscita mais horror do que a morte, e vice-versa. Fiz a pergunta a todos os meus amigos: “Estás pronto a morrer agora mesmo?” Nunca nenhum deles me respondeu. Eu estou pronto; mas também estou pronto a viver mais cem mil anos. Não será a mesma coisa? (…) Há os homens. Não nos devemos levar muito a sério.» Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 27 Agosto Homens há que semeiam no deserto. Dia 8 de Setembro nascerá, ali para Alvalade, novo lugar de cultura, sobretudo fotográfica, com foco e desfoque no fotojornalismo. Francisco Leong, Luís Filipe Catarino, Jérôme Pin e o Bruno [Portela] são as almas penadas que assombrarão o CC11, começando com a exposição «Diário de uma pandemia». Pediram a este escriba que olhasse para dúzia e meia de (façanhudas) capas de jornais e revistas tugas. «A coreografia revela confrontos, ou melhor, idas e vindas, aproximações e cruzamentos, enfim, dança entre drama e quotidiano, apelos tonitruantes ao épico e a voz baixa do trivial, o dentro e o fora, a vista de longe e o íntimo, heróis e líderes, o tudo na mesma no miolo da excepção. Torna-se fascinante acompanhar os olhares dos fotógrafos sobre o vazio. Os viadutos, lugar de passagem, canal para o sangue que alimenta a grande máquina em movimento contínuo, tornaram-se traços na paisagem. O homem só em plano próximo repete-se à exaustão. Não apenas como metáfora brilhando sobre a humana condição, mas ligando-o ao acontecimento, essa notável mestria do fotojornalismo. O primeiro plano daquele que passa tem como fundo um santuário das multidões. Que lugar para a fé neste instante? O indivíduo que cruza infindável passeio sob viadutos e prédios altos de cidade futurista leva de sacos de compras, a única razão de saída, e, está bem de se ver, máscara.» Mouriscas, Abrantes, sábado, 30 Agosto Alguém passa na estrada e o Cão Tinhoso, depois de coçar com a pata de trás a pulga das obsessões, estica ao máximo a coleira da ignorância e rosna a quem passa, a tudo o que mexe. Baba-se no gesto que lhe parece absoluto e vocacional, ao serviço da mais alta missão moral. Meio cego com a febre da carraça, não distingue a motoreta velha do assaltante ágil, cospe latidos que ecoam pestilentos no quintal a que chama mundo. Há sempre uma alma caridosa que lhe atira restos, não tanto para lhe matar, mas por apreciar o grande circo do patético. Que bem fica a cambalhota da dissonância no deserto!