A palavra e a teia

[dropcap]T[/dropcap]erça-feira, dia 25, no Teatro da Rainha, terá lugar mais uma sessão do Diga 33, as conversas em torno da poesia moderadas pelo Henrique Fialho, e desta vez o convidado sou eu. Imprudência minha em ter aceitado e do Henrique em dirigir-me o convite pois sou um medíocre orador.

Chego depois de uma semana no Algarve, assombrada pelo “esplendor” ártico das águas; mas onde, com um entusiasmo juvenil me apanhei numa actividade que há décadas não praticava: a apanha de conquilhas na maré baixa, única forma exaltante de não pensar no frio. Não as sondava com o pé, drago as areias com as mãos, penetro com os dedos os seus mantos suaves para lhes perscrutar os nós, os bivalves.

Ainda tenciono ler um ensaio sobre a metáfora da filósofo e poeta de Barcelona Chantal Maillard, que me ajudará a aclarar algumas ideias para a conversa, pois tenho muitas afinidades com o que ela pensa.

Mas poderei desde já apontar alguns princípios, os meus “nós”:
– a poesia e a ciência são as duas formas de conhecimento que admitem por atracção e desencadeamento o desconhecido;
– o poema não é uma transcrição de um mundo conhecido de antemão mas sim um processo em que a intercepção e a descoberta andam a par;
– o poeta não escreve só para expressar-se mas igualmente para orientar-se dentro da sua própria vida ;
– a realidade não pode ser postulada sem o esforço simultâneo para a compreendermos, sendo a arte e a poesia, como processos contínuos, um testemunho desse desejo;
– a palavra é na verdade uma fibra e o poema um feixe de fibras que se organiza como uma intrincada rede de densidade semântica. O mais próximo do poema é a teia de aranha, visto que no poema como naquela “o todo está inteiro em cada uma das suas partes” (logrando uma dimensão fractal) e que, igualmente, quando algo toca um fio da teia do poema esta vibra inteira; daí que uma só palavra errónea possa destruir o poema;
– o poema arma a teia para capturar insectos mas a qualidade da atenção que desperta, a intensidade da sua atracção, só eclode quando lá caem pássaros e essa eclosão do inesperado é que abre espaço para o mistério (uma forma de inteligência não circunscrita cujas leis clamam por tornar-se conhecidas) que todo o verdadeiro poema sonda;
– a este “inesperado” que rompe o fluxo chama-se comumente irracionalidade, imaginação, compulsão isomórfica ou revelação – quatro maneiras de designar o mesmo: há níveis diferentes de realidade e modos distintos de percepção duma mesma realidade;
– o realismo, como se diz na Índia, é apenas um dos quarenta modos de decoração da realidade, i. é, a sê-lo não se equivale ao modo restringido e em auto-decapitação como é de uso concebê-lo nas poéticas hoje mais em voga na nossa tradição mas antes como um modo de abrir “poros” na realidade;
– o poema abre “poros” para além da esquadria da retórica e de uma visibilidade à cabotagem;
– um bom poeta aprende a utilizar em seu proveito as forças do acaso para as reenquadrar na sua pauta de referências, não para as sufocar, mas antes como um plinto ou um “acelerador de partículas” e a um ponto que, paradoxalmente, não pareça haver nada de casual na sua obra, nem nenhum elemento gratuito que obscureça a percepção do poema;
– há uma irracionalidade descendente e uma irracionalidade ascendente: Eugenio D’Ors, chama a esta o “nível angélico” (uma espécie de supraconsciência, que material e fenomenicamente é o polo contrário do subconsciente freudiano), embora este possa ter pouco de pio, sendo apenas o acesso a um nível cognitivo onde voltam a re-ligar-se os padrões e pulsa uma nova inteligibilidade da totalidade, que no plano anterior era apenas intuída; admitida a hipótese de que haja devir e seja fito do homem superar-se;
– a um ateu como eu é mais fácil admitir com o Fausto de Pessoa, que os deuses têm os seus próprios deuses, e que no fundo o sentimento do religioso é um saudável princípio de proporcionalidade que o poeta não se deve abster de possuir; no que ajuda ter a honestidade de integrar-se numa tradição e num sistema de “admirações” que lhe dão lastro e perspectiva, sabotando de antemão o seu ego q.b.;
– toda a simplicidade é um resultado e não um postulado criativo; ou seja, é mais fácil a um barroco ser simples quando o texto assim o exige do que a um “militante da austeridade” ser criativo;
– a quantas palavras deve recorrer o poeta, na sua paleta, ou qual deve ser a extensão do seu léxico? As suficientes para lembrar a pertinência com que Wittgenstein observava que os limites do nosso mundo são os limites da nossa linguagem. Se numa cesta de frutos só houver nozes, o nosso conhecimento dos insectos será mais limitado do que se houver um pomar na nossa cesta. É neste sentido que Harold Bloom defendeu, num livro de setecentas páginas, que Shakespeare (que usou quase trinta mil palavras) foi quem “inventou o humano”. Este pôde entender novos e mais subtis modos de relacionamento humano e político e até de afecções sentimentais porque as iluminou pela primeira vez num plano distinto de acções com a amplitude das modulações da sua imersão numa linguagem total;

– “Quando encontro/ neste meu silêncio/ uma palavra/ está fundida na minha vida/ como um abismo”, escreveu Ungaretti, descrevendo com exactidão a minha relação com a palavra: por estar imerso no silêncio e no deserto é-me mais difícil falar do que escrever.

Não sei se vou conseguir explicar estes meus princípios, ou se me evadirei contando histórias.
Fica o esboço.

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