VozesRacista sou eu João Romão - 7 Ago 2020 [dropcap]V[/dropcap]ivo num país onde se apreciam os transportes públicos, claramente preferidos em relação ao automóvel nas deslocações quotidianas nas grandes cidades: não é coisa de pobre, é uma questão de racionalidade do urbanismo, da ecologia e da qualidade de vida. Naturalmente, além da inevitável bicicleta, também utilizo estes transportes: um comboio convencional e um “monorail” quase diariamente e autocarros muito ocasionalmente. Também é natural que os veículos estejam frequentemente cheios em zonas urbanas, ainda que a ocupação tenha, felizmente, diminuído bastante nos tempos em que as vivências em espaços públicos são manifestamente afectadas pela presença do covid-19 – ou pelo menos pela ominipresença de um mais que justificado e generalizado medo. O que é menos “natural”, tendo em conta a quantidade de gente que usa estas formas de transporte, é que raramente alguém se sente ao meu lado. Não deixa de ser bastante conveniente e simpático nos tempos que correm, mas sempre causa algum “desconforto”, para dizer o mínimo, em tempos de convivências “normais”, ou pelo menos não afectadas pelo temor de contágios potencialmente mortíferos. Não é coisa minha e já mais de uma vez encontrei textos com descrições semelhantes escritos por pessoas estrangeiras a viver no Japão – o “síndroma do lugar vazio”, como lhe chamou um desses cronistas do ciberespaço. Poderá haver diferentes causas, explicações e motivações para o fenómeno, mas na generalidade dos casos este manifesto ostracismo só é ultrapassado com pessoas que me conhecem – amizades, colegas ou alunas que ocasionalmente coincidam comigo num transporte público. Outra peculiaridade japonesa tem a ver com a utilização de um alfabeto (o chamado “katakana”) exclusivamente utilizado para a adaptação de palavras com origem em línguas estrangeira – normalmente o inglês, ou na realidade o americano, já que é dos Estados Unidos que chegam os grandes impactos culturais, económicos ou políticos. A utilização deste alfabeto implica algumas curiosas mutações, já que há regras que têm que ser mantidas, por exemplo em relação aos sons. Uma delas, com efeitos muito significativos, é que as palavras terminam sempre com o som de uma vogal (com excepção do som “m”). Aliás, mesmo as sílabas no interior das palavras têm que terminar com sons de vogais. Uma das muitíssimas palavras que sofre pesadas mutações neste contexto é a palavra “half” (metade, em inglês), que na adaptação ao “katakana” se torna “ha-fu”, com um “a” vagamente prolongado e um “fu” final que lhe dá um toque quase insuspeito de se querer dizer “half”. Vem isto a propósito de ter rapidamente reparado que a minha filha, recentemente nascida no Japão, com mãe japonesa, e certamente portadora de enorme graciosidade, era carinhosamente tratada na maternidade onde nasceu como “ha-fu”, a expressão que, vim a saber agora, é generalizadamente utilizada para designar descendentes de uma pessoa japonesa e de uma pessoa estrangeira. Por ser tão graciosa rapidamente se tornou bastante popular entre o pessoal do hospital, mas ainda assim é “ha-fu”, meia-pessoa, portanto, designação com a qual terá que viver enquanto cá estiver e para a qual teremos certamente as nossas estratégias de defesa e contra-ataque rápido, sempre que for caso disso. Vêm estes casos sintomáticos de um certo racismo estrutural e estruturante, não violento nas suas manifestações imediatas mas não necessariamente inóquo nas suas consequências pessoais, sociais ou políticas, a propósito da vaga racista que tem crescido um pouco por todo o lado, auto-legitimada pela representatividade institucional de movimentos abertamente xenófobos e/ou fascistas, como podemos testemunhar também em Portugal. Pela parte que me toca, não é de agora, que estou no lado da minoria, que o assunto me preocupa: já nos anos 90, numa das minhas primeiras crónicas na imprensa comercial, tinha escrito sobre racismo após o assassinato de Alcino Monteiro. Volto ao tema após o bárbaro assassinato racista do Bruno Candé: este racismo manso e sonso com que vivemos quotidianamente não deixa de ser discriminatório todos os dias, mesmo se a violência extrema de um assassinato ocorra raramente. Está tudo lá, contra os que são menos e estão na posição mais débil. O mínimo que a decência nos exige perante a discriminação sistemática é usar a nossa posição de privilégio para estar ao lado e defender quem é atacado e discriminado. Foi por isso que cedo me juntei a grupos como o SOS-Racismo, lá vão uns 30 anos, e por este lado destas trincheiras vou ficando, que o mundo ainda não está para esta trégua. Nada disto me impede, infelizmente, de usar também conceitos e formulações racistas. Continua a ser para mim um exercício sistemático contrariar as ideias e o contexto da sociedade em que fui educado – e em que o racismo e as inerentes discriminações estão profundamente enraizadas, estruturando em grande medida a forma como olhamos para outras pessoas ou sociedades: os franceses que são pretensiosos, os ingleses que são snobs, os espanhóis que não são de fiar, uns bêbados, os russos, umas putas, as russas e as brasileiras, uns gandulos, os marroquinos ou mesmo os alentejanos e até eu próprio, algarvio. Um saco de porrada para todas as ocasiões, os pretos. Não é só em anedotas que se traduzem todos os estereótipos e preconceitos com que olhamos para pessoas, de formas só aparentemente inofensivas: isto estrutura, de facto, formas de discriminação. Contrariar essas formas de violência no meu próprio pensamento continua a ser uma tarefa que tomo como essencial para poder olhar o outro como a pessoa que é e não como o rótulo que lhe foi colado. Há uma educação e uma sociedade profundamente racistas que nos deram a todos estas formas de olhar de cima para baixo sobre toda a diferença. Reparo, entretanto, na quantidade enorme de pessoas que na imprensa ou nos ciberespaços da vida contemporânea garantem que não são racistas, enquanto discutem acaloradamente se o seu país é ou não racista. Uma discussão estéril e inconsequente, evidentemente, que atira para longe o olhar que devia ficar perto: em vez dessa imprecisa generalização de “o país”, talvez fosse mais produtivo cada pessoa olhar para si própria, como o racismo estrutura tão frequentemente o seu próprio olhar e como procurar que esse olhar tantas vezes preconceituoso e redutor não se traduza em discriminações e formas de violência sobre as outras pessoas.