Perspectivas VozesA Covid-19, ciência e trabalho (II) Jorge Rodrigues Simão - 27 Jul 2020 [dropcap]H[/dropcap]á uma grande vontade por parte de muitos jovens em alguns Estados-Membros da UE de trabalharem para o bem comum através do serviço público ou civil e que nasceu da experiência dos objectores de consciência, influenciados pelo padre italiano Lorenzo Milani que trabalhou como escritor e pedagogo na escola popular Barbiana, aberta “doze horas por dia, trezentos e sessenta e cinco dias por ano”. A sua actividade educacional com crianças pobres sob os seus ensinamentos levou a várias cartas críticas bem como o seu trabalho, escrito em conjunto com os seus alunos da montanha. A “Carta a um professor” expôs o classismo e a selectividade da escola obrigatória; a “Carta aos capelães militares” e a “Carta aos juízes” foram epístolas públicas como resultado de uma reacção ao “Comunicado dos capelães militares licenciados da região da Toscana” e o seu subsequente processo judicial. É importante considerar a sua afirmação de que a obediência já não é uma virtude. Aqueles que foram para a prisão para afirmar a ideia de servir o seu país não com armas, mas ajudando os fracos e oprimidos, combatendo a miséria e a privação cultural dos países e das periferias urbanas deve ser um exemplo. Os jovens que hoje estão envolvidos em dezenas de projectos sociais e culturais com migrantes, ciganos e crianças pobres pela Europa e mundo devem ser considerados. Serve a quem entender como sendo uma recompensa que lhes permita um mínimo de autonomia pessoal, e que talvez pense que terá uma experiência que lhes será útil para encontrar um emprego, se a economia e a política ultrapassarem o esquema perverso em que o trabalho socialmente útil deve ser livre e voluntário, e o trabalho que vale a pena pagar é o trabalho que é feito para produzir bens que não são tão úteis ou prejudiciais como os usados para fazer a guerra. Mesmo no trabalho físico em fábricas será necessário manter distâncias. Deve ser uma condição para retomar a produção. Para garantir a saúde daqueles que trabalham. Os empresários discutem mais com os políticos e autarcas do que com os sindicatos; os sindicatos e os trabalhadores não confiam neles com razão pois houve greves para que não fossem obrigados a trabalhar na produção de bens não essenciais, e em locais onde a segurança não estava garantida. Afinal, vivemos em um mundo que em Janeiro de 2020 não havia Covid-19 e hoje são milhões de infectados e centenas de milhares de mortos. A incapacidade de decidir sobre quais as zonas vermelhas em determinados países, a fim de não interromper a produção considerada essencial para a competitividade económica, causou centenas de mortes. A Covid-19 torna evidente uma contradição que sempre atravessou o mundo da produção e do trabalho. Que põe em relevo a dialéctica entre as necessidades de lucro, competitividade e a saúde e vida dos trabalhadores. Do ponto de vista dos que trabalham, decidir se trabalha para viver ou para morrer. De repente ou pouco a pouco. O reinício do trabalho deve ser em todo o lado uma oportunidade de ter uma discussão séria sobre a saúde no local de trabalho, abordando, para além da protecção contra o vírus, as condições que fazem com que a doença e a morte acompanhem normalmente a vida das pessoas que trabalham. A questão do distanciamento no local de trabalho pode ser uma enorme oportunidade para os sindicatos e trabalhadores associarem a protecção da saúde a uma re-discussão dos regimes de tempo de trabalho e da organização do trabalho. Se não se quiser que a Covid-19 dure para sempre de forma insidiosa, ou talvez regresse com maior força, nunca mais se conseguirá entrar e sair do trabalho, e começará tudo de novo. Terá de ser concebido um regime flexível de tempo de trabalho, e as suas obrigações contratuais serão as de manter em conjunto as necessidades das empresas e as necessidades das pessoas no trabalho. As necessidades de estudo e de cuidados pessoais e familiares, os seus prazeres e os seus deveres como cidadãos activos e responsáveis. O oposto do pedido feito a muitas categorias de trabalhadores, de uma vontade ilimitada de trabalhar horas extraordinárias, de trabalhar a tempo parcial indefinidamente, de responder sem demora ao apelo da empresa, sem qualquer possibilidade de planear a sua vida para além do trabalho. Mas esta possibilidade será tanto mais forte quanto mais associada estiver a uma redução global do tempo de trabalho. É incrível que, quase um século após a sua conquista, estejamos ainda ancorados a oito horas como horas normais de trabalho, após os extraordinários aumentos na produtividade laboral devido aos avanços tecnológicos, e com aqueles que nos esperam com a intensificação da automatização de grande parte da produção de bens e serviços. Numa situação difícil como esta, é complicado imaginar que a redução das horas de trabalho trará mais emprego, mas será uma forma de defender o que vai além da utilização pura e simples do subsídio de desemprego, licenças e amortecedores sociais. É a premissa para uma distribuição mais justa e mais sensata dos benefícios dos ganhos de produtividade nos próximos anos. A distância no trabalho pode ser, como para o trabalho à distância, uma forma de acorrentar as pessoas ainda mais à lógica de um algoritmo impessoal, aproveitando, para aumentar o ritmo e controlo, a condição de relativo isolamento dos trabalhadores, ou uma forma de expandir os espaços de autonomia, responsabilidade e profissionalismo dos trabalhadores. O trabalhador espaçado verá a sua possibilidade de intervir em processos e produtos, de corrigir erros, de modificar e melhorar a mesma postura do seu corpo em relação às operações. Será mais pessoa, dentro de um processo colectivo. Este aumento de responsabilidade e autonomia deve ser reclamado profissionalmente e também traduzido em salário. Apoiado com toda a formação necessária. Talvez a partir daqui os sindicatos possam encontrar uma forma de entrar na negociação individual, que nos últimos anos tem aumentado muito através de uma relação directa entre o empresário e o trabalhador individual, retirando do processo de negociação quotas salariais cada vez mais substanciais. É necessário tornar transparente o enriquecimento profissional do trabalhador, certificar e valorizar as competências adquiridas através do trabalho e da formação, tentar inverter a história dos últimos anos que esmagou os sindicatos sobre o trabalho padrão, que tinha faltado no fundo do trabalho confiado aos tarefeiros, e no topo da lista, as alterações qualitativas do trabalho. Mas para que isto seja possível, será necessário curar outra ferida existente entre pessoas que trabalham em indústrias e serviços, hospitais e aeroportos com as mesmas tarefas mas com salários e direitos radicalmente diferentes. Nos estaleiros navais, por exemplo, dois terços dos trabalhadores que passavam pelos portões pela manhã fazem parte dos tarefeiros de outros países, e trabalham frequentemente com contratos e salários de romenos, albaneses e polacos. E enquanto a grande maioria dos trabalhadores são sindicalizados, ninguém fala com os trabalhadores das empresas, excepto por vezes o sindicalismo básico. Ainda mais grave, deste ponto de vista, é a situação logística. Os armazéns dos supermercados enchiam-se de trabalhadores mal remunerados e na sua maioria intermitentes. E mesmo nos hospitais havia uma enorme diferença de salários e direitos entre os trabalhadores e os das empresas e outras instituições para as quais a maioria das tarefas era subcontratada. O estreito confronto sindical da reabertura, mais do que nunca, deve ser inclusivo, e recuperar a fragmentação dos contratos e direitos que caracterizaram o antes Covid-19. Uma negociação precisa e articulada, mas que deve ser enquadrada na iniciativa de um novo Estatuto de Direitos. No entanto, estes serão tempos difíceis para os trabalhadores. Muitos verão os seus rendimentos reduzidos, outros perderão os seus empregos e demasiados terão de procurar um novo emprego. Todos serão sujeitos a pesada chantagem, pois ou recomeçam como antes, fazendo o de então, mesmo que seja prejudicial para si e para o ambiente, ou perdem os seus empregos. Os sindicatos teriam de ser incisivos para que os trabalhadores adquirissem o direito de participar nas escolhas de produção da empresa, para terem uma palavra a dizer sobre as mudanças necessárias e para que a produção não prejudique a saúde e o ambiente. Na produção ambientalmente sustentável pode haver mais trabalho, e de melhor qualidade, do que a produção poluente. Por exemplo, o edifício de recuperação e reutilização pode encontrar muito mais espaço do que aquele que cimenta novas partes do território, para onde os abutres do impulso de emergência olham; e tal como nas energias renováveis, para a quantidade de energia produzida, são necessárias muito mais pessoas do que nas centrais eléctricas a carvão e a gás. Será necessário pensar, se não quisermos sofrer as mudanças necessárias, se o acordo verde vai começar, sendo necessário, um grande projecto de formação para permitir aos trabalhadores exercerem o seu direito a ter uma palavra a dizer sobre inovações, produtos e tecnologias. Afinal, este é um requisito fundamental de um trabalho digno. O liberal socialmente responsável como é John Dewey disse que “O trabalho é uma actividade que conscientemente inclui o respeito pelas consequências como parte de si; torna-se trabalho forçado, se as consequências estiverem fora da actividade, como um fim para o qual a actividade não é senão um meio”. Será necessário apoiar com recursos públicos os trabalhadores que decidam gerir sós as empresas abandonadas pelos empresários, nacionais ou estrangeiros, e aqueles que construíram a produção e trabalham nas actividades económicas tiradas a organizações falhas ou ilícitas. O trabalho que pode aumentar imediatamente é o da administração pública. A pandemia suspendeu a desconfiança do trabalho público alimentada pela corrente liberalista e pelos meios de comunicação social que durante anos martelaram os cidadãos com a ideia de que o público é desperdício e o privado é bom. As pessoas tocaram na seriedade, profissionalismo, dedicação dos que trabalham na saúde pública, no espírito de sacrifício e criatividade dos professores que passaram muitos dias sem abandonarem os seus alunos. Condutores de eléctricos e metropolitanos. Os colectores de lixo que continuaram a viajar por cidades desertas com os seus veículos. E por aqueles que, desde os cobardes dos incêndios postos, à polícia, à Protecção Civil, aos milhares de voluntários de associações seculares e religiosas, que se comprometeram a tapar os buracos do sistema de segurança e a não deixar ninguém sozinho. Começam a perceber-se, após anos de propaganda absurda e desviante, como os funcionários públicos em relação à população estão mais presentes que em países de outros continentes. O pós-Covid-19 poderia ser uma boa altura para apresentar as contas e tapar os buracos mais sensacionais. A começar pelas escolas e pelos cuidados de saúde. O último ataque ao público que está a começar é contra a burocracia que está a travar com as suas restrições os grandes projectos de infra-estruturas que devem recomeçar, custe o que custar. É necessário evitar práticas longas e inúteis, mas vale a pena salientar que muitas vezes a causa do cumprimento e do abuso da construção e da paisagem é a mesma, tendo enfraquecido quantitativa e qualitativamente, os números e o profissionalismo, o sistema de protecção com reduções à superintendência e ao planeamento público com cortes de despesas aos gabinetes técnicos e de planeamento territorial das autoridades locais. A fim de recomeçar rapidamente, legalmente e com respeito pelo ambiente e pelo território, haverá também necessidade de investir e contratar. Muitas das questões requerem uma visão e iniciativa europeias. A começar pelas regras necessárias para evitar o dumping salarial e de direitos, que está na raiz tanto das vias de externalização das empresas como da selva contratual que caracteriza o regime de muitos tarefeiros. Tal como o salário mínimo e o rendimento de cidadania só podem ser europeus em perspectiva. As mesmas transformações produtivas e inovações empresariais vão para além da dimensão nacional. As cadeias de produção e de valor atravessam fronteiras. Os sindicatos dos trabalhadores da Europa, cuja ausência, para além das evocações retóricas e da moda, foi o que mais pesou nesta crise, terão de ser construídos rapidamente, a fim de lhes garantir solidariedade e justiça social. No entanto, o trabalho que recomeçar terá de tratar do território, do povo, dos sujeitos mais fracos como prioridade. Reconhecendo neste terreno o trabalho que já existe e o novo trabalho que é necessário e dando-lhe valor. Uma ideia feminina de trabalho terá de se tomar, para vencer o desafio, uma prioridade também entre os homens. O novo mundo, como dizem dois grandes homens como Alain Touraine e o Papa Francisco, será feminino ou não.