Singularidades de uma política económica

[dropcap]A[/dropcap]inda que me me continuem a preocupar as coisas públicas, constato que cada vez me motiva menos discutir governos, ministérios e outros incidentes administrativos. Há quem diga que na infância e na velhice toda a gente é anarquista e eu já vou entrando nesta fase da existência em que a paciência para jogos de salão e truques de ilusionismo se vai reduzindo a cada dia que passa, ainda que o público e a comunidade me continuem a interessar. Afinal as coisas públicas são outras e as instituições que delas deviam tratar estão hoje demasiado entretidas com ambições pessoais de protagonistas tantas vezes desqualificados para a função. Faz parte de certa abordagem da economia pública, hoje dominante, que tratou de desarticular e destruir o estado social em nome de um individualismo feroz para mais tarde justificar a incompetência da gestão pública e a urgência inevitável das privatizações. Ensinou-se nas universidades, pelo menos desde os anos 80, também em Portugal. E foi fazendo o seu caminho, empobrecendo a política, a comunidade, e a própria economia, que vai vivendo em estado mais ou menos anémico apesar da ávida e acelerada destruição do planeta.

Vem isto a propósito de querer hoje escrever sobre um ministro, um ex-ministro, aliás, da nossa República. Por acaso ou não, é também um amigo de muito longa data, coisa de infância, adolescência e até universidade, sempre com intensidade suficiente para que se mantenha uma certa ideia de proximidade, apesar de não nos cruzarmos há uns 25 anos. Foi, aliás, quando as abordagens neoliberais começavam a marcar presença nas universidades de economia e gestão em Portugal que nos licenciámos, na segunda metade dos anos 1980, em pleno apogeu do “pugresso” cavaquista, dos burgessos subitamente transformados em referências teóricas, do embrutecimento da análise económica e das suas implicações políticas, cada vez mais reduzidas a uma suposta análise da rentabilidade financeira – até essa largamente duvidosa. Foi nesse contexto de afirmação de uma certa hegemonia neoliberal em Portugal que criámos uma lista unitária de esquerda numa das maiores escolas de economia e gestão do país – e ganhámos todas as eleições enquanto lá estudei, às vezes com mais de 90% dos votos.

Era já na altura uma espécie de “geringonça”, como pejorativamente veio a ser designado o governo consensualizado entre PS, BE e CDU após os anos de desastre da austeridade neo-liberal que massificaram a pobreza, mataram a esperança de um qualquer horizonte de futuro, obrigaram à emigração. Nessa segunda metade dos anos 1980, o BE estava ainda longe de nascer mas já havia o PSR e a tal lista unitária que havia de liderar a associação de estudantes incluía também pessoas do PCP (a maioria) e do PS (em clara minoria), além de outras muito boas vontades que se juntaram nesse caminho. Na realidade, quando cheguei a Lisboa para começar a licenciatura, num fim de semana de Outubro, participei imediatamente numa reunião para preparar a lista para a associação de estudantes, ainda antes sequer de ir às aulas que só começariam na segunda feira. Um ano mais velho do que eu, e por isso já a começar o seu segundo ano no ISEG, quem me levou a essa reunião foi o Mário Centeno.

A dita “geringonça” não foi por isso uma surpresa: se alguém podia conceber um plano para as finanças públicas do país que pusesse de acordo PS, BE, PCP, Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI, seria certamente o Mário Centeno – tecnicamente exímio, politicamente experimentado nas difíceis artes das convergências à esquerda, familiarizado com as dinâmicas institucionais do país e do mundo. A proposta possível para conciliar tão divergentes pontos de vista não podia senão estar muito para lá dos convencionais campos de possibilidades e implicava passar muito ao largo de todos os limites impostos pelas teorias económicas ortodoxas: reduzir impostos, recuperar os salários da função pública, reduzir o desemprego, equilibrar as contas públicas e reduzir a dívida pública para relançar o investimento público no futuro. Tinha razão quem criticou tão despropositado programa – e foram na altura todos os analistas, da extrema esquerda à extrema direita, além das ditas “instituições europeias”: nada naquele plano podia ser suportado pela teoria económica existente ou pelas práticas conhecidas aquém e além-mar: ou contenção das contas públicas com recessão e desemprego, ou expansão das contas públicas com crescimento e emprego mas mais défice e mais dívida pública.

E no entanto, moveu-se. Não só a prática, mas a teoria. Quem estude economia pública sabe do extraordinário contributo teórico que o exemplo prático das finanças públicas portuguesas deu a conhecer. A haver casos semelhantes em todo o mundo, serão raríssimos. E jamais tratando-se de uma economia mergulhada numa recessão profunda como era a portuguesa até 2014. Esse contributo teórico e prático foi largamente reconhecido na Europa, com entusiastas declarações de governantes à esquerda e à direita, num continente com uma economia à deriva, sem soluções técnicas convincentes, quanto mais políticas: fala-se de inovação mas pouco se inova e as economias vão sobrevivendo sem grandes horizontes de um futuro melhor mas com a perspectiva do colapso ambiental eminente. À falta de soluções, o plano português, recebido com a natural desconfiança que o desafio às ortodoxias teóricas impunha, acabou a ser visto como uma oportunidade para a abertura de novos caminhos – o que obviamente não tem grande suporte entre quem beneficia dos caminhos velhos.

O percurso percorrido até ao fim de 2019 corresponde com precisão às ambições planeadas e não ao que estipulava a teoria económica dominante. Compreendo as críticas que fui lendo, à esquerda e à direita, garantindo que jamais tal programa teria a mínima hipótese de funcionar. Mas funcionou: as contas públicas registaram um equilíbrio jamais conhecido na democracia portuguesa, ao mesmo tempo que o salário mínimo tinha um crescimento sem precedentes históricos no país; diminuíram desigualdades, com os salários a ganhar importância na riqueza nacional e o rendimento disponível das famílias a subir drasticamente; o emprego aumentou rapidamente e a dívida pública desceu. Não vi nenhum dos críticos que apontou as contradições evidentes entre as propostas de Mário Centeno e as ortodoxias teóricas vir a terreno assumir que se tinha enganado: sim, foi possível implementar políticas públicas em Portugal que desafiaram o que até então se pensava sobre o assunto: comentadores sempre a postos para a crítica mais contundente mas afinal desconhecedores das possibilidades da auto-crítica. Passei a dedicar-me a outras leituras, portanto.

Este caminho de matemático rigor e precisão era desconhecido até então em Portugal, com orçamentos das contas públicas que dispensaram rectificações sistemáticas e que revelaram no final de cada ano o realismo de propostas que estavam muito para além dos limites do que parecia possível. Talvez não seja esta combinação única entre rigor técnico e criatividade teórica que fez de Mário Centeno um Ministro das Finanças com inusitada popularidade entre a população. Talvez tenha sido só mesmo a constatação óbvia de uma súbita e significativa melhoria das condições de vida de quem trabalha. A observação de que políticas diferentes podem trazer resultados diferentes. Hoje, observo com satisfação que, da esquerda à direita, todos os partidos e grupos de opinião têm melhores soluções para as finanças públicas do que as que o Mário Centeno trouxe ao país. O futuro está garantido e só pode ser radioso.

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