Vozes10 de Junho – “Da minha língua vê-se o mar” Manuel de Almeida - 10 Jun 2020 “Sou de todos os mares, De todos os profundos oceanos do mundo. Sou de todos os portos, do barulho das suas docas De todos os enormes navios fundeados nos cais E dos que estão encalhados nos bancos de areia (…) Sou de todos os faróis que há nas noites das costas Indicando, nos segundos cronometrados da sua luz, A traição dos continentes, das ilhas e dos bancos de areia (…) Sou de toda a extraordinária força da gente marítima Que se entrega aos abismos do mar com a sinceridade De quem se dá ao único destino possível da terra (…) Sou de todos os voos de gaivotas e das travessias Quase incompreensíveis aos homens da terra tão lentos Por isso a minha pátria é o mar (…) João Meneres de Campos Mar Vivo em “Poesia da Presença” [dropcap]É[/dropcap] um milagre. Portugal (1143) é um milagre de quase nove séculos, nove séculos como nação livre e independente (sem grandes ameaças, nem grandes traumas) – que mantém uma identidade cultural vincada e uma língua viva -, se os países fossem ordenados pela antiguidade pela ONU, Portugal ascendia ao pódio, a um honroso 3º lugar, logo atrás da China e da Inglaterra. Mas, se o critério fosse a imutabilidade das fronteiras, então até os «nossos» Amigos chineses seriam suplantados. Falta-nos um só século, um só, para atingir um milénio de existência e aí “um país deixa de ser um país e passa a ser uma civilização, essa coisa que funde a história com o mito”. “um palmo de terra para nascer, um mundo inteiro para morrer” , Padre António Vieira (1608-1697). Celebrar o 10 de Junho – o «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas» – data que assinala a morte do “príncipe dos poetas portugueses” (em 1580), o Homem que “cantou” o dobrar do cabo das Tormentas, “para servir a Pátria, ditosa minha amada” – “uma vida pelo mundo em pedaços repartida”. Se tivermos o privilégio de ler a essência do tema (Dia de Portugal de Camões e das Comunidades Portuguesas), e se tivermos os Lusíadas como auxiliar de Leitura, facilmente deduzimos que é nesta obra maior de Camões que encontramos, “apelos contínuos para a urgência da liberdade e justiça para uma sociedade construída nos princípios da honra e nos valores da solidariedade” e, não será aí que lemos “o humanismo universalista dos portugueses, a abertura para o mundo e a invenção da modernidade”. Em Portugal, a origem dos feriados é tão longuínqua quanto a monarquia constitucional, entre 1820 e a Implantação da República, em 1910. Foi Almeida Garrett, que introduziu o romantismo literário em Portugal – o seu poema “Camões”, de 1825, do período de exílio, foi a primeira obra do romântismo da história da literatura portuguesa -, que identificou Luiz Vaz como modelo de herói português. A ideia de se comemorar o III centenário de o autor d’Os Lusíadas partiu de Joaquim de Vasconcelos, que a apresentou em 1879 na Sociedade de Geografia, fruto da confluência de vontades, do republicano Teófilo Braga e o socialista Antero de Quental, “foram durante as décadas finais do século XIX as faces opostas da mesma moeda” –viriam a cortar relações a partir de 1872. A 10 de Junho de 1880, um grupo de intelectuais , com o republicano Teófilo Braga à cabeça – entre outros faziam parte Ramalho Ortigão, Sebastião Magalhães Lima (futuro grão-mestre da Maçonaria), Luciano Cordeiro e Jaime Batalha Reis – organizou a Comemoração do III centenário de Camões. Um cortejo cívico e patriótico português, marcado pelo protesto contra o sistema da regeneração, o Governo e a política colonial. Apesar de vários amigos seus – Ramalho Ortigão e Batalha Reis – terem participado, Eça de Queirós, opôs-se, “considerou-o ridículo, tendo declarado não ser com colchas penduradas nas varandas, mas com uma cultura viva que uma nação se prestigiava”: “Eu não reclamo que o país escreva livros, ou que faça arte: contentar-me-ia que lesse os livros que já estão escritos e que se interessasse pelas artes que já estão criadas”. A festividade incluiu a transladação, para os Jerónimos, dos restos mortais de Vasco da Gama e de Camões, um velho sonho de Almeida Garrett que, desde 1836, pregava pela existência de um Panteão Nacional. Após a Implantação da República, a 5 de Outubro de 1910, foi criada uma comissão legislativa com o objectivo de elaborar o projecto da bandeira da República Portuguesa e decretar os feriados nacionais. O Hino Nacional – «A Portuguesa» -, já existia desde 11 de Janeiro de 1890, logo a seguir ao Ultimato Inglês (o princípio do fim da Monarquia Constitucional). O Ultimato Inglês de 1890 e a crise financeira que veio logo a seguir, em 1891-1892, fizeram cair a monarquia. Composto e orquestrado por Alfredo Keil como marcha patriótica, com letra do poeta Henrique Lopes de Mendonça, foi tocado pela primeira vez por uma banda filarmónica. A banda do Carril, hoje Filarmónica da Frazoeira, do concelho de Ferreira do Zêzere. Apesar de composta ainda no tempo da monarquia, «A Portuguesa» tornou-se de tal forma popular que os republicanos adoptaram-na como Hino Nacional. Sete dias após a revolução republicana, a 12 de Outubro, o Governo provisório todos os feriados civis e religiosos, decretando apenas cinco, este mesmo decreto consagrava por outro lado a origem dos feriados municipais. O primeiro feriado nacional, decretado pelos republicanos, foi o 1.º de Dezembro, como o dia da «Autonomia da Pátria Portuguesa», o vulgarmente designado «Dia da Bandeira». Os outros feriados decretados foram: o 1.º de Janeiro, consagrado à «Família Universal»; o 31 de Janeiro dedicado aos «Precursores e Mártires da República»; o 5 de Outubro em homenagem aos «Heróis da República» e, finalmente o 25 de Dezembro, o «Dia da Família». Honrar Camões, poeta da “Bíblia da Pátria”, foi o objectivo inicial de Lisboa ao adoptar o 10 de Junho como feriado municipal. A primeira romagem à Gruta de Camões, dá-se a 7 de junho de 1923. Era governador o republicano Rodrigo José Rodrigues (1879 – 1963). Só em 1933, no Estado Novo, sob a batuta de Oliveira Salazar, o «Dia de Camões» passa a ser festejado a nível nacional. A data celebrava o «passado épico e o carácter singular» dos portugueses, ideias da «nossa» identidade. Até ao 25 de Abril de 1974, o 10 de Junho era conhecido como o «Dia de Camões, de Portugal e da Raça». Homenagear as forças armadas é outro dos objectivos do 10 de Junho, a partir de 1963. Exaltação da guerra e do poder colonial. Finalmente, a terceira República, como não se revia neste feriado, a partir de 1978, converteu-o em «Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas» -, mas nem sempre o espírito da iniciativa está presente. Agitações, tumultos, revoltas e batalhas – dentro e fora de portas – risos e emoções – e, como navegamos em mares agitados – angústias e tristezas -, saques, crises e bancarrotas. Tradições e virtudes, insatisfação e preconceitos. E, assim vivemos quase há nove séculos – é fado! Foi neste desalento, pobre e à deriva “que deram novos mundos ao mundo”. Saber criar uma nova perspectiva geográfica do pensamento, para não estarmos ainda hoje a recordar as palavras de Eça de Queiroz (em «O Distrito de Évora»): “É assim que há muito tempo em Portugal são regidos os destinos políticos. Política do acaso, política do compadrio, política de expediente. País governado ao acaso, governado por vaidades e por interesses, por especulação e corrupção, por privilégio e influência de camarilha, será possível conservar a sua independência?”. Deixámos abolir – inconscientemente (?) – a «nossa» auto-estima. Daí resulta que uma faixa significativa da população vegeta e uma percentagem mínima vive, um dos lados de uma moeda já fora de circulação – e, assim vamos cantando e rindo! Subjugados ao poder de interesses, hoje como ontem – Ramalho Ortigão (em «Últimas Farsas» de 1911), escrevia: “O acordo de dois partidos, revezando-se sucessivamente no poder (…) falhara inteiramente na sua reiterada aplicação prática. O jogo permanente (…) desgastara todas as engrenagens, boleara todos os ângulos, puíra todas as arestas (…). Nenhum dos dois partidos a si mesmo se distinguia do outro, a não ser pelo nome do respectivo chefe, politicamente diferenciado, quando muito, pela ênfase pessoal de mandar para a mesa o orçamento ou de pedir o copo de água aos contínuos”. Combater os «nossos» próprios defeitos, será um dos caminhos – estes pesam na «nossa» herança cultural -, temos de saber reorganizar o espaço afectivo. Temos de criar e desenvolver a nossa própria gramática e sintaxe: uma nova linguagem de afirmação no mundo, a outra morreu nos finais do séc. XVI – não deixa saudade! Em 2012, em pleno período da intervenção da troika em Portugal, foram abolidos quatro feriados nacionais, dois religiosos, dois civis: Corpo de Deus (11 de Junho); Dia de Todos os Santos (1 de Novembro); Implantação da República (5 de Outubro) e Restauração da Independência (1 de Dezembro). Neste último caso quebrou-se a tradição. Era o feriado mais antigo que existia em Portugal, vinha já desde a primeira metade do séc. XIX, tendo resistido até à I República. Um dos primeiros gestos oficiais de Marelo Rebelo de Sousa, actual Presidente da República, foi repor os feriados perdidos, contra o coro de protestos das Associações patronais. E aqui chegamos – “por este rio acima” -, às Comunidades! “Macau, a primeira República democrática do Oriente, e ponto tradicional de interpretação e sincretismo cultural” … e, continua a ser o português a “língua dos nossos encontros, desencontros e reencontros”. * Vergílio Ferreira (1916/1996)