As memórias

[dropcap]A[/dropcap]lbert Rios, que nasceu em 1945 na Cidade do México, vivendo aí toda a sua vida como escritor e jornalista, até à sua morte na semana passada devido ao contágio do Covid-19, atingiu grande popularidade nos anos 80, depois do romance “Sem Pés Nem Cabeça”, que retratava a vida de vários jovens numa favela da Cidade do México, divididos entre o sonho americano e uma realidade sem nada. Não tiveram escola, não tinham trabalho, sem quaisquer hipóteses de cidadania que não fosse a queda na criminalidade.

Numa passagem do livro, lê-se pela letra do narrador: “Enquanto chupava o policial, pouco reparando na carne que se derretia na boca ou nos gemidos, Guadalupe pensava no que Miguel lhe tinha dito de manhã, na possibilidade de fuga para o Texas na noite seguinte. O pénis do velho gordo não tinha quaisquer hipóteses de se fazer ver ou de se fazer sentir em comparação com o sonho de liberdade. Nem os impropérios causavam qualquer constrangimento na jovem rapariga.” Mas a expressão do título “sem pés nem cabeça” também se referia ao método dos traficantes de droga contra quem não colaborava, de modo a intimidar todos os outros: cortavam-lhes os pés e a cabeça, deixando exposto nas ruas das favelas o resto do corpo com uma polaroid colada. O título tinha assim um duplo sentido: o absurdo da situação e o concreto da mesma.

Desde 1965, o então jovem Albert Rios tornou-se amigo do poeta Octavio Paz. Amizade que durou mais de três décadas, até à morte do poeta. Numa entrevista em 1984, aquando da publicação de “Sem Pés Nem Cabeça”, Paz disse acerca de Rios: “o escritor que melhor mostra o México; um país onde as pessoas nunca estão no momento em que estão. Poder estar onde se está é um luxo que infelizmente não atinge o nosso povo. Falta-nos ainda muito para poder ter os pés bem assentes nesta terra.”

No terceiro e último volume das suas memórias, editado no final do ano passado, e num capítulo inteiro que é também o maior do livro, Albert Rios desenvolve uma reflexão acerca da grande capacidade que teve em não se cumprir. Esse capítulo, que se chama “Não há um dia”, começa com uma citação de Kierkegaard: “O homem tem preferência pelas ilusões de ótica e pelas miragens, descansa melhor nelas.” Depois da citação, Rios escreve: “Com isto, o pensador dinamarquês quis deixar claro a tendência humana para se enganar a si mesmo e querer ser enganado. O humano ama o engano. O mais feliz dos humanos é aquele que é continuamente enganado, por si e pelos outros, sem que disso desconfie.” O texto desenvolve depois vários modos de engano a si mesmo, como sejam a imagem que se tem de si, julgando amiúde ser-se aquilo que se não é. O exemplo que Rios dá é o de alguém que num determinado momento da vida se julgava bom pianista e depois mais tarde, ao ouvir essa gravação, fica horrorizado com as inúmeras falhas cometidas, que lhe mostram claramente o quanto estava errado acerca do seu valo como pianista. Escreve Rios: “E o que é válido para uma apreciação estética num determinado momento é válido para todos os juízos em todo o tempo da vida. Podemos estar continuamente errados acerca do que pensamos de nós.” Até aqui não há nada de especial, pois estamos em território de Kierkegaard. O interessante do texto acontece a seguir, quando Rios escreve: “Sempre tive uma ideia errada acerca de mim. E por isso sempre julgava ser quem não fui e sempre vivi sendo o que não era. Mas este nunca ter sido quem julguei ser, advém de nunca me ter esforçado por ser quem julgava poder ser. Passo a explicar. Ter aprofundado os meus estudos em Kierkegaard e o estudo do dinamarquês, quando o interesse pelo filósofo apareceu na minha vida. Não o fiz.

E não o fiz, porque de algum modo julgava não ser necessário esse estudo para saber, como se gostar de tocar piano fosse suficiente para se ser pianista. É aqui que se opera o engano. Mas o que aconteceu com os estudos de Kierkegaard e da língua dinamarquesa, aconteceu com inúmeros aspectos da minha vida.”

Percebemos então a razão de começar o capítulo com uma citação do filósofo dinamarquês e com um pequeno desenvolvimento do seu pensamento. Rios queria chegar a si mesmo, mostrar-nos que não ter estudado o que gostaria de ter estudado, é um dos exemplos claros de como ele viveu a amar o engano. Dá-nos mais alguns exemplos. O seu gosto pelo futebol. “Eu via claramente que o futebol protegia a alienação do meu povo, que nos entretinha num mundo paralelo, nos afastava da educação e da política, mas não conseguia deixar de gostar, de participar, de ir ao estádio, de vibrar com os golos do América. Não conseguia deixar de me enganar. Os argumentos com os quais atacava a telenovelas não faziam efeito no futebol.

Enganava-me. Por vezes dava-me conta de que gostar de futebol era uma fraqueza, participar da alienação do país, mas rapidamente esquecia e arranjava múltiplos argumentos para defender a imagem que tinha de mim mesmo.” E se a ideia que fazemos de nós é um grande mal-entendido, não será também tudo o resto?

Rios escreve: “A verdade é que é mais fácil acontecer mal-entendidos entre mim mesmo do que entre mim e o mundo. Preciso de me enganar em relação ao mundo, é certo, mas preciso muito mais de me enganar em relação a mim. Ao longo da vida precisei muito mais de não me ver como era do que ver como era o mundo.”

Os três volumes das memórias de Albert Rios têm interesse biográfico, literário e filosófico. Mas o último volume traz a mais valia do capítulo “Não há um dia” – ao que o autor acrescenta “em que não me engane a mim mesmo” –, que faz da leitura do livro uma urgência para todos nós, os outros, que sabemos muito bem quem somos.

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