Crónico Oriente h | Artes, Letras e IdeiasVisitas ao Samorim Duarte Drumond Braga - 22 Mai 2020 [dropcap]O[/dropcap] Samorim, figura histórica que em 1498 recebeu Vasco da Gama em Calicut, é personagem d’Os Lusíadas, e vamos encontrá-lo “modernizado” (como o poeta diz) em Lendas da Índia (Dom Quixote, 2011), de Luís Filipe Castro Mendes. Fruto de uma estada em New Delhi onde o diplomata viveu, o livro recolhe uma experiência da Ásia já atravessada pelo ar pós-colonial e multicultural do nosso tempo, que o obriga a nascer com várias precauções ideológicas. Começando por desmascarar estereótipos – “alguns pensam que a Índia é um país/ de milionários e de faquires…” (p. 53) –, o livro desde logo ultrapassa o modo exótico, que não sobrevive para o europeu mais do que o tempo de duas monções. Se é certo que o autor recusa tal registo, vai porém glosando velhos tópicos que dominaram a visão europeia da Ásia ao longo dos séculos XIX e XX. Voltando ao Samorim, é curioso verificar que a questão que ele traz à tona é exatamente a mesma das recentes polémicas em torno dos Descobrimentos, da escravatura e do racismo, que tem agitado as àguas da intelectualidade portuguesa, em televisões e jornais: “Não causou estranheza ao Samorim que o Gama usasse com ele o verbo «descobrir»:/ tinham menos sensibilidade colonial aqueles reis/ e o «olhar antropológico» era para eles uma questão de mercado.// É verdade que o verdadeiro mundo colonial só veio depois./ Subramanyam estranha que o Samorim tenha deixado o Gama dizer/ que viera «descobrir» aquelas terras, de todos conhecidas,/ e insinua confusão dos tradutores árabes.// Mas o Samorim pensava/ que estava tanto a descobrir aquela gente como a nossa gente/ o estava a descobrir a ele./ O comércio tinha que crescer/ E a concorrência era proveitosa./ Não era nem um combatente da liberdade nem um leal colonizado:/ era o Samorim!” (“1498: Modernidade do Samorim”, p. 127) Para Castro Mendes, o Samorim não é nem o anacrónico freedom fighter pós-colonial (no sentido anti-colonial deste último termo), mas também não é uma figura sem existência real fora d’Os Lusíadas. Assim, o Samorim “moderno” do autor representa um pragmatismo diplomático e económico que visa desconstruir o complexo pós-colonial português: o Samorim tratou com Gama com pragamatismo e não se importou em ser “descoberto”. A introdução de uma dimensão crítica e de debate no poema, para a qual não se coíbe de apresentar nomes (como o do historiador indiano Sanjay Subrahmanyam) e de emprestar voz às posturas em confronto, é uma das dimensões mais interessantes deste livro. Nesta visão que se pretende descomplexada, quer em relação à Ásia, quer em relação a Portugal, torna-se absurdo pedir desculpas pela História – “A História (…)/ serve agora para pedirmos desculpa do passado,/ dispensando-nos de olhar para o presente”, (p. 43). A questão não é porém assim tão simples, na medida em que todas as posições são ideologicamente comprometidas e feitas a partir do ponto presente, mesmo as que buscam repor a tal verdade histórica ou encerrar estas questões na esfera da culpa, do remorso e do complexo, no sentido psicanalítico do termo. Esta discussão bastante viciada esconde talvez a dimensão mais interessante do livro. É por entre esta questão, com muitas armadilhas e alçapões, que se assume que Lendas da Índia trata, não apenas da Ásia, mas também de uma Ásia que é Portugal, embora não já num sentido imperial. As tais marcas que a cultura portuguesa deixou na Ásia são também Ásia, e são hoje (talvez sempre o tenham sido) mais Ásia do que Portugal.