Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO humor sinistro António Cabrita - 7 Mai 2020 [dropcap]N[/dropcap]a Nazaré, num filme de Elia Suleiman: dois homens de má catadura acercam-se de um terceiro e o mais velho e baixo entre eles rosna, “Este meu filho – aponta-lhe o arcaboiço – já papou todas as mães da cidade e eu papei a mãe dele, estamos entendidos?” É a mais divertida fanfarronada que vi nos últimos tempos porque é um dito de engenho. Nada esclarece melhor a jactância, a habilitação do engenho do que esta frase de Francisco Umbral: “Deus é um suporte para fazer catedrais”. Ou lembro aquele príncipe hindu que embriagado pela morte da amada mandou escavar uma gruta para lhe devotar um templo imorredouro, cuja urna ocupava o átrio. Mas insatisfeito com a homenagem, todos os anos mandava escavar e esculpir uma nova nave mais grandiosa, até que ao fim de duas décadas de obras incessantes, entra um dia no seu templo e apontando a urna que guardava os ossos da amada pergunta: Que bodega é esta? Tire-se isto daqui! O que define o engenho? O engenho é o artifício que a inteligência elabora para continuar a jogar. A sua meta é conseguir uma liberdade desligada, astuta, a salvo da veneração e da norma e o seu método é uma perpétua desvalorização da realidade. Abolida a seriedade, predomina a obsessão lúdica. Los Angeles ergueu-se no deserto. Para quê? Para servir o jogo. Os portugueses sabem o que é isso. A primeira dinastia ainda pariu um país de desígnios, mas, desde a exumação em 1640, Portugal nunca conseguiu ser mais que uma pátria de engenhosos, quase sempre despojada de desígnio. Por isso nunca se inculpará Sócrates, o engenhoso engenheiro é o retrato fiel dos portugueses e ninguém mete na cadeia o próprio espelho. África também envereda pelo mesmo equívoco, é um imenso lar de idosos desiludidos, de engenhosos oportunistas políticos e de jovens sem futuro; deixou de ser um território com desígnio. Concluo, com horror, que a sugestão de Oscar Wilde, outro engenhoso, de que a vida imita a arte nos mantém reféns. Tudo o que imaginamos volta-se contra nós com uma crueldade impensável, inclusive quando o ímpeto lúdico pretendia ser um sinal de liberdade e subtrair-se aos esquemas da coerção. Imagine-se as cólicas de André Breton ao ver como a sua sugestão, no seu Manifesto, de que um acto surrealista seria ir ao terraço mais alto da cidade e disparar ao acaso sobre a multidão foi aproveitada pelos “snipers”, que se entretém a fazer do acaso da morte alheia jogo. Com grandes hesitações escreveria hoje Bataille que a essência do erotismo é a contaminação e que o imperativo higiénico seria o fim do erotismo. E mais lastimável é a sensação de que toda a aposta no engenho e na paródia que marcou a arte do século XX degenerou no mais abjecto panorama político, como se uma esquizofrenia sem remédio nos cindisse, resultando esta da dupla injunção do engenho: desvalorizar a realidade e fortalecer o eu. Trump é o rei dos engenhosos. O problema com ele não é ideológico, para Trump tudo existe para ser incluído no seu projecto de jogo. Não admira que procure safar-se das situações penosas com soltura, pelo atrevimento e o chiste, rejeitando a realidade. Só assim se compreende que tenha usado o sarcasmo e proposto aos americanos que injectassem desinfectantes contra o Covid, abstraindo-se do seu poder de influência – o que resultou em mais de trinta mortos. Quem resiste a uma boa piada? Ele não queria ser levado a sério, afinal, o jogo desresponsabiliza. O seu objectivo não é a “America first”, é antes fazer realçar a sua subjetividade à custa do colapso do mundo, e nesse afã foi crescendo o seu descaro, porque ele vai a todos “os lances” abstido de prudências e coações, longe de importar-se do olhar dos outros. Trump é o Mallarmé da política, o mundo inteiro existe para ser uma bola na sua roleta. Não está só, nesta adição ao jogo. Esta propensão para a paródia e o engenho hoje até na técnica predomina, convertida em renda e consolas e furtada ao objectivo de conhecer a realidade. E onde está o engenho, o vício do jogo, na comunicação? No fake-news. Repare-se, já não se trata de uma questão de dotar de poder a mentira, ou de ensaiar a falência moral em sucedâneo à deficiência cognitiva programada, a verdadeira motivação para o fake news encontra-se no vício do jogo; o ensejo extramoral ou de levar à bancarrota as representações ideológicas foi ultrapassado pelo empenho em apostar tudo na trivialidade e de ao princípio da adequação à realidade se contrapor a força do capricho. Não é esta a época em que tudo se pode reduzir à caricatura e ao imperativo da comédia, sendo a realidade apenas o plinto para um chiste em potência? Etimologicamente, desastre significa: sem estrelas. Ou seja, sem exterior, sem o outro. É aí que estamos. O engenho dispensa o real. E, explica-nos Jose Antonio Marina: «estamos contentinhos, porque ao engenhoso se aplica o lema arrogante e desolado que emocionava Valle-Inclán: “Desprezar aos demais e não amar-se a si mesmo”. Esta pose desvalorizadora e crítica permite admitir no campo semântico do engenho um convidado imprevisto: o cínico. O cinismo é a arrogância de quem se limita a perpassar.» Eis-nos reféns daquilo a que o barroco Grácian chamava o humor sinistro.