h | Artes, Letras e IdeiasQueridos monstros João Paulo Cotrim - 22 Abr 2020 Santa Bárbara, Lisboa, quarta, 14 Abril [dropcap]E[/dropcap]stou convertido, embora no degrau de humilde iniciado, a esta enigmática secção das grandes artes divinatórias, a da interpretação de lombadas. Através da qual, e por via da disciplina e estudo, alcançamos com invulgar grau de certeza essências como o lugar (da estante) em que nos encontramos, a melhor orientação dos passos (perdidos) e a aguda interpretação do passado, para não invocar a esfera celeste ou as circunvoluções da massa cinzenta. Sacudida a poeira do lombo, eis-me perante o desafio de «Idées Noires», de Franquin (ed. Fluide Glacial ou a edição portuguesa Witloff, sendo que a leitura ganha em ser acompanhada pela edição da «Fluide Glacial Série-Or» dedicada a este «olhar humanista sobre a loucura do mundo»). O autor que, para dizer o mínimo, reinventou Spirou e criou figuras da mitologia contemporânea como Gaston Lagaffe movia-se no universo do bom humor, pela produção artística e inclinação genérica, cultivando fama de simpatia e generosidade. Quando se percebeu que convivia com depressão, mesmo antes de agravada por enfarte em meados da década de 1970, isso passou a lente de aumentar explicações para tudo e mais um pêlo. Há doenças assim, que ocupam com galhardia e ordenamento a posição da identidade. Portanto, também para esta série discreta, que saltou das páginas da revista «Spirou», onde foi sempre um quisto, para a «Fluide Glacial», mais dada às correntes da acidez. São histórias curtas, críticas ferozes do militarismo, do consumismo, enfim, das cegueiras capitalista e religiosa. E celebrando assertivamente a vida animal, a ecologia, os monstros, que desenhava ininterruptamente com grande alegria e delícia, além do seu tema principal: o indivíduo e um radical, para dizer o mínimo, absurdo. Humor negro, portanto. Duplamente negro. Se na bd habitual, a cor, nas mais óbvias e luminosas das suas combinações, era a cor que reinava, aqui e sobre fundo branco, tornado o quotidiano branco, subjugado por um manto de neve-página. Quase sempre, que no espaço sideral tudo se invertia. E há (pouca) vida em outros planetas. As figuras nascem negras e eis um primeiro sinal do assombro. Esta massa que absorve a totalidade possui infinidade de detalhes, uma expressividade que desafia cada tentáculo da nossa atenção. Em versão original, as palavras «idées noires» são seres estruturalmente feitos de olhos e pêlos, cada minúsculo e fino traço transfigurado em pelugem vibrátil e metamorfoseante. O corpo de uma ideia. As histórias que me interpelam agora em plena tempestade de areia, que sempre me interrogaram, são as existencialmente peludas. Descrição, com perda: grande plano de um rosto animado e sorridente. Quem me ama, que me siga. Abre o plano de um deserto a desembocar em céu de preto retinto. Planando, um abutre. Descrição: uma multidão organizada em filas sucessivas desloca-se da esquerda para a direita, encurvada pelo pensado dos pensamentos, continuarei sempre um número entre outros, sem saber como alguns conseguem chegar mais e mais rápido que outros. De súbito, um executivo – distingue-se bem no negro – passa velozmente e assentando sapato de verniz sobre a cabeça da massa abaixo, sim, debaixo. Algures na página reproduz-se outro. Descrição: grupo em festança saltitando de plataforma em plataforma, de ilha em ilha, vai crescendo o intervalo entre elas e a dificuldade até ao agudo e espinhoso final. Penso no esquecido Reinaldo Ferreira: «Eu, Rosie, eu se falasse eu dir-te-ia/ Que partout, everywhere, em toda a parte,/ A vida égale, idêntica, the same,/ É sempre um esforço inútil,/ Um voo cego a nada./ Mas dancemos; dancemos/ Já que temos/ A valsa começada/ E o Nada/ Deve acabar-se também,/ Como todas as coisas.» Poderia encher o interminável dia saboreando a descrição, modo de redesenhar acariciando, maneira de roubar a pretexto da partilha (se houvesse leitores, claro). Descrição: alguns têm título, por exemplo este que pede para não se confundir a inevitável marcha do fado com destino animado. Uma figura fina sobre o branco diz-se curiosa para ver o que eles inventaram. De súbito, a sombra, e de cima desce lentamente um negro, mas dinâmico, riscado, não pleno. A figura procura correr e a cortina desce, fatal como o destino. À direita do quadrado seguinte aparece um branco prometedor, a figura corre e parece conseguir, mas o chão torna-se pastoso, um betume afinal cola, mas a humana figura quase indistinta do chão esforça-se ao máximo. No quase, o negro esmaga-o, deixando apenas cabeça e grito. Santa Bárbara, Lisboa, quinta, 15 Abril Conheço mal o trabalho de Luz (Rénald Luzier), desenhador de humor e redactor do «Charlie Hebdo», mas a edição referida ontem da «Fluide» apresentou-mo e a sua homenagem a Franquin em estilo duplo, traço simples em diálogo com aguarela livre, cativou-me. «Catharsis» (ed. Futuropolis) reúne as histórias curtas (de Janeiro a Junho de 2015) com que o artista foi enfrentando os seus monstros. O dia do ataque terrorista ao jornal era também o do aniversário de Luz, que por isso e pormenor que não conto embora seja desenhado, chegou atrasado à reunião de redacção, mas muito a tempo de apanhar em cheio com os estilhaços do massacre. Durante longo período foi incapaz de desenhar e aqui entramos no dia-a-dia do seu combate, peito aberto e exposto a cada fase do luto, até que o traço, expressão da vontade, regressa: dois olhos enormes sustentados por corpo mínimo hirto, mãos junto às coxas, tudo rabiscado, esboçado, a fingir hesitação, mas longe da exactidão do contorno. Além do resto, explosivo e sensível, o desenho faz-se aqui personagem, suscitando reflexões em torno do prazer e da dor, de como certas linguagens se fazem líquidas, etéreas e poderosas, na expressão dos silêncios e vazios que são a nossa matéria primeira. Descrição: em «Interlude», um já reconhecível Luz parece agastado e começa um bailado que o desintegra de mil e expressivos modos, gargântua de onde saem outras bocas menores em esgar, sempre em traço puro e solto, como se o pincel não se soltasse nunca do papel até que o grito se cospe em grosso A, continuação do ininterruptamente alinhamento da primeira letra do alfabeto, som da dor e do espanto. A figurinha sai na direita baixa dizendo: faz-se o que se pode. Digo no óbvio: a sucessão e o alinhamento dos pequenos contos resulta lancinante, comovente, humana. Tão humana, que se faz bem humorada. Um final feliz por envolver desejo, talvez sexo. Santa Bárbara, Lisboa, sexta, 16 Abril Dizem que o povo está todo a ler no seu recolhimento obrigatório. Para não me cansar, tratei de entrar floresta dentro, até por a ver avançar, dos lados do Campo de Santana, da face a norte do Areeiro, nos tufos de jardim que alcanço. Esta versão de «Hansel & Gretel» (ed. Bloomsbury) nasce dos cenários para uma ópera, encomendados a Mattotti, para os quais escreveu depois Neil Gaiman esta versão, que não se afasta do clássico, sem esconder a violência de pais que se livram dos filhos em tempo de aperto. Interessa-me nesta «darkly brilliant fairy tale» o negro negrume com que ardem as ilustrações do italiano. Volumes inquietos de negro a bailar na página, permitindo apenas ligeiros afloramentos de luz. Escusado será dizer: não vejo senão isso na coreografia dos tempos.