Demis Roussos em livro

[dropcap]A[/dropcap]dam Aagaard foi um escritor dinamarquês que morreu no ano passado com 77 anos. Nasceu e viveu quase toda a vida em Copenhaga. Escreveu fundamentalmente peças de teatro e apenas um romance, ainda sem tradução em Portugal, cujo título é Aldrig Verden (1991), que podemos traduzir por «Nunca O Mundo». Este romance que na altura foi muito criticado na Dinamarca e na Alemanha tem uma passagem que podemos considerar como a que melhor descreve o jovem protagonista e celibatário, que é também o narrador: «Depois de ter lido os romances de Thomas Bernhard deixei de conseguir ler os de outros autores, por me parecerem todos uma espécie de Demis Roussos em livro.» A acção passa-se na Copenhaga de finais dos anos 80, poucos anos depois da edição de Extinção de Bernhard, e o narrador vive sozinho num pequeno apartamento, de onde quase nunca sai, evitando ao máximo o contacto com as pessoas – «Os outros não são o Inferno, mas lembram-nos que ele existe» – tentando escrever uma tese de doutoramento sobre o filme de Carl Theodor Dreyer, A Palavra.

Curiosamente, ou talvez não, porque a vida é profícua em grandes desajustes, Aagaard era protestante, assim como o seu protagonista. «Nunca O Mundo» é o título da tese do jovem Erik. Todos viram o filme de Dreyer, não precisamos de lembrar aqui, apenas dizer que o jovem vê o filme do seu compatriota como uma tentativa de fazer reset ao mundo. Escreve: «Só a vivência da fé no seu limite pode salvar o mundo.» E este salvar o mundo era evidentemente uma espécie de começar de novo, como se até aqui estivéssemos errados, o mundo estivesse errado. «Nunca O Mundo», então, encontra um evidente eco nas palavras de Jesus no Evangelho de São João «O meu reino não é deste mundo». A esta altura, já nos perguntamos como é que Bernhard faz sentido, não só no livro, mas nesta personagem. Leia, então, esta passagem que nos elucida o modo como Erik conecta o que nos parece inconectável: «Temos de conseguir odiar o mundo como nos romances de Bernhard. Só assim será possível dar o passo seguinte, em que nos libertaremos desta vida sem sentido.»

Estamos perante um romance de trincheira. Um romance que tem como objectivo, não o entretenimento, não o conhecimento ou a reflexão, mas um projecto político, uma Weltanchauung, uma visão do mundo. No fundo, embora em pele de romance, o livro era um manifesto. A páginas tantas, lê-se: «Deve-se escrever apenas para destruir ou para construir o mundo. O resto é conversa de café, e lá deveria ficar.» À medida que o romance vai avançando, e com ele a tese de Erik, vamos entendendo melhor como ela se liga aos romances de Bernhard e estes ao filme de Dreyer. Ao longo de todo o romance, como um fantasma, vai surgindo a figura de Kieerkegaard, outro dos heróis do jovem protagonista-narrador. Semanalmente, Erik escreve uma carta a Kierkegaard, contando o desastre em que vai o mundo, que não melhorou nada desde a morte do amigo, pelo contrário vai muito pior. Leia-se um excerto de uma das cartas: «Meu querido amigo, como encontrar palavras para descrever este mundo em que vivemos? Desistimos de escrever. O que hoje se faz passar por escrita é pior que os jornais que você lia há mais de cem anos nesta cidade. A fé, essa, é um negócio. Maior ainda do que acontecia no catolicismo ao tempo das bulas papais. […] A filosofia está entregue aos números, às estatísticas, às análises de linguagem. Alegra-me tanto saber que você não está a ver isto! […]»

Não posso contar aqui o final do livro, pois é muito surpreendente, mas devo dizer que até ao final o leitor vai sendo sempre surpreendido, ao ponto de tanto nos identificarmos com Erik como de termos vontade de abandonar o livro, do mesmo modo que ele abandonou o mundo. Como escreveu a também escritora dinamarquesa Karen Madsen a propósito deste romance: «Um livro quase sempre incompreendido, muitas vezes treslido, e raramente confrontado com os seus verdadeiros fantasmas: o de uma sociedade dinamarquesa enclausurada entre a fé e o esquecimento, entre os seus heróis radicais e um povo que os esquece.» De brinde, julgo eu, temos ainda análises certeiras ao sentido do romance em Thomas Bernhard. Deixo aqui apenas um excerto: «A escrita de Bernhard é profundamente ética. Nos nossos dias, entre o colapso da fé e multiplicação da corrupção é um dever odiar o mundo.»

A verdade é que, ainda que não sejamos dinamarqueses, ainda que não sejamos crentes, sentimos a angústia e o desespero de Erik como nossos. Para nós aqui e agora, mais do que «nunca o mundo», mas que não difere do ponto de vista de Erik durante o romance, é «para quando o mundo?”

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