IPM | Alunos de Cabo Verde acusam instituto de restrições à liberdade de movimentos 

Alunos do Instituto Politécnico de Macau, naturais de Cabo Verde, relatam ao HM estar a viver uma “enorme pressão psicológica” devido às medidas de combate ao novo coronavírus. Os estudantes falam de restrição da liberdade de movimentos, com controlo excessivo de entradas e saídas da residência onde vivem, além do excesso de trabalhos marcados pelos professores. A situação é confirmada pelo jurista António Katchi, que fala de atropelos à lei, mas o IPM nega tudo

 

[dropcap]O[/dropcap] relato é feito no anonimato, por e-mail, por não quererem sofrer ainda mais represálias. Alunos naturais de Cabo Verde a estudar no Instituto Politécnico de Macau (IPM) confessam ao HM estar a passar por momentos complicados devido às medidas de quarentena impostas para combater o novo coronavírus, de nome Covid-19. Em causa estão grandes restrições à liberdade de movimentos e um excesso de trabalho académico.

“Temos passado por um período bastante difícil, quer no plano académico (com o estudo quase inteiramente auto-didacta e uma sobrecarga de trabalhos para casa, tudo isto agravado, no caso de alguns alunos, pela falta de computador), quer no plano pessoal, com a privação quase completa do exercício da liberdade de circulação”, começam por dizer.

No que diz respeito ao excesso de trabalho, os alunos falam do facto de os professores terem colocado, na plataforma online, “um volume de matérias e trabalhos que não se registaria numa situação ‘normal’”. “A pressão psicológica é enorme, pois o prazo estipulado para a entrega dos trabalhos é muito curto. Houve casos em que os alunos, por não terem computadores, dirigiram-se à cantina da escola para fazer os trabalhos, mas, ao regressarem às respectivas residências, foi-lhes barrada a entrada, pois tinham ultrapassado o limite do prazo estipulado [para a saída], que é de 30 minutos”, explicam ainda.

Assegurando que não estão a receber qualquer acompanhamento psicológico por parte do IPM, os alunos falam de restrições à liberdade de circulação, acusando a instituição de ensino superior de estar a levar a cabo “uma ilegalidade completa”.

Compras online

No email enviado ao HM, foram enviadas cópias das mensagens de Wechat aos alunos com as regras a cumprir no que diz respeito à sua circulação. Foi dito aos alunos que estes não poderiam deixar as suas residências e que teriam de fazer compras online. “Foi-nos recomendado um website para fazer as compras, mas os preços dos produtos não estão de acordo com a nossa realidade financeira. Quando questionámos, foi-nos feito outro aviso que dizia que esse website era apenas uma sugestão”, relatam os alunos.

Para poderem sair, estes alunos referem que têm de pedir autorização junto das governantas das residências. “Temos de especificar onde pretendemos ir e o que iremos fazer. De imediato as governantes têm de pedir a aprovação do IPM, e se considerarem que o motivo da saída não é importante, o pedido é indeferido. Caso contrário autorizam a nossa saída”, relatam.

Mas a burocracia não se fica por aqui. Quando vêm a saída autorizada, os alunos dizem ter de preencher um formulário com o nome, número do quarto, número de telefone, motivo da saída, horas de partida e de chegada. Caso haja atrasos, os alunos são alvo de discriminação, apontam.

“Ultrapassado o limite estipulado somos praticamente humilhados, pois obrigam-nos a escrever um relatório onde declaramos os motivos do atraso. Temos de prometer que a situação não voltará a acontecer pois, caso contrário, seremos punidos (com a ameaçada da redução do subsídio ou até mesmo expulsão do território).”

Neste sentido, os alunos questionam se o IPM “se preocupa verdadeiramente com o bem-estar dos alunos”. “Estamos emocionalmente abalados, o sentimento de falta de humanidade é notório. A instituição que nos acolheu num momento tão delicado como este mostrou-se indiferente”, confessam os alunos, que dizem não estar a receber apoio dos professores.

“Temos pedido apoio a alguns professores, para que possam intervir junto da direcção do IPM para amenizar a situação, mas o Feedback não tem sido positivo”, descrevem.

Ilegalidades em causa?

Ao descreverem os dias de quarentena no IPM, os alunos defendem que a instituição de ensino superior não está a cumprir a lei. “No domínio do direito administrativo, há actos administrativos nulos por ofensa ao conteúdo essencial da liberdade de circulação, já que não assentam em qualquer base legal que legitime a privação do exercício desse direito. Isto porque nós não estamos legalmente sujeitos a quarentena e, por isso, a maioria dos estudantes regressaram ao país de origem.”

O HM questionou o IPM sobre o número de estudantes que regressaram a Cabo Verde. Mais de 50 por cento já o fizeram, responde a instituição de ensino. “Os alunos que permanecem nas residências de estudantes manifestaram vontade de esperar pelo regresso oficial às aulas e estão a ter aulas online. Relativamente aos que regressaram para Cabo Verde manifestaram que preferem ter aulas online em Cabo Verde”, é ainda dito.

São também rejeitadas as acusações de falta de apoio psicológico. “O IPM disponibiliza apoio aos alunos cabo-verdianos que permanecem nas residências, incluindo o tutor de turma, apoio psicológico, encarregado de residência e ensino electrónico.”

Os alunos falam ainda de ilegalidades cometidas com as regras impostas. “Pode considerar-se haver um crime de coacção. O facto de termos a ‘opção’ para sair de Macau pode excluir o crime de sequestro, mas não necessariamente o crime de coacção. A ‘opção’ de sair de Macau só o é para aqueles que conseguem arranjar dinheiro em tão curto prazo, o que revela logo o carácter discriminatório da dita ‘opção’”, apontam.

Além disso, “para quem não tenha condições de fazer essa opção, a ameaça de ser irradiado do curso, no caso de não acatar as proibições de saída do dormitório pode ser considerada como uma ‘ameaça com mal importante’”.

António Katchi, jurista e professor do IPM, tem conhecimento da situação acima descrita através de relatos de alunos, mas diz comentar o caso apenas a título pessoal. “Considero a situação verosímil porque vários alunos a relataram em termos semelhantes. Depois, vários alunos têm feito a difícil opção de regressar temporariamente a Cabo Verde.”

Katchi disse ainda saber que professores do IPM, “seguindo as vias internas normais, diligenciaram junto dos sucessivos escalões hierárquicos com vista à correcção desta situação logo que dela foram informados pelos alunos”.

Em termos jurídicos, o professor universitário diz concordar com os argumentos apresentados pelos alunos. “Não conheço qualquer base legal para os actos administrativos relatados, nomeadamente porque os destinatários desses actos não estão legalmente sujeitos a quarenta, ao abrigo da Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis”.

À luz desse diploma, o jurista aponta para o facto de os estudantes em causa não estarem infectados nem existir qualquer suspeita de infecção. “Aqueles estudantes não são, nem foram considerados por nenhuma autoridade sanitária, como um grupo específico de risco de contágio. Estão sujeitos a um risco normal, como a população em geral, pelo que o seu isolamento, ainda que parcial, não se justificaria mais que o do resto da população. Por conseguinte, isolá-los apenas a eles constitui uma clamorosa discriminação.”

Katchi destaca ainda outro ponto que comprova a ilegalidade desta decisão. “Tanto quanto se saiba, o Chefe do Executivo não emitiu esta ordem, e se o tivesse feito ela tinha de ser do conhecimento público. [Nesse sentido], os órgãos dirigentes do IPM não teriam competência para tomar essa decisão do lugar do Chefe do Executivo”, explicou.

Para o professor universitário, “dada a situação aflitiva em que se encontram os estudantes em questão, os Governos dos respectivos países deveriam ter promovido o repatriamento temporário daqueles que o desejassem, por forma a poupar às suas famílias um enorme sacrifício financeiro e evitar que os estudantes mais pobres ficassem para trás”.

Do outro lado

Confrontada com estas acusações, a direcção do IPM negou ter colocado entraves à circulação dos alunos. “O IPM não colocou nenhuma limitação à entrada e saída dos alunos residentes. O registo destes alunos pelo encarregado de residência, feito antes das saídas, tem apenas o objectivo de aperfeiçoar os trabalhos de prevenção à epidemia e garantir a segurança e saúde dos alunos”, lê-se na resposta enviada por e-mail.

O IPM assegura que não houve quaisquer punições aplicadas aos alunos por terem ultrapassado os prazos de saída das residências, mas alerta para o facto de aqueles que vivem nas residências “deverem permanecer [nelas] durante a suspensão de aulas e evitar sair às ruas, evitando locais com concentração de pessoas quando não for necessário”.

Na resposta, o IPM assume “continuar a observar e ajustar, em devido tempo, as medidas relativas à gestão das residências, devido à evolução da epidemia, para que os alunos residentes possam voltar, gradualmente, à vida académica normal”.

O HM voltou a confrontar os alunos com esta posição do IPM, mas estes dizem não estar surpreendidos com a posição demonstrada. “A situação que relatámos foi vivida e sentida por todos”, rematam. De frisar que este caso foi denunciado pelo deputado José Pereira Coutinho numa entrevista à TDM. Ao HM, o deputado lamenta a resposta vaga do estabelecimento de ensino.

“É este registo de entradas e saídas que está a ser objecto de contestação por parte dos alunos. Nesta resposta, e dada a gravidade da situação, o IPM não nega a existência desse controlo nem se dispõe a averiguar o que é relatado, a resposta nada diz. Lamento que tente encobrir os procedimentos e espero que não se repitam no futuro”, concluiu o deputado.

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