O ódio à Greta

[dropcap]F[/dropcap]reud explica que determinadas imagens têm mais facilidade do que outras em invocar os traumas recalcados. É o caso da imagem da Medusa, por exemplo, que nem sequer é uma greta, mas que o pai da psicanálise dá a entender querer fazer-se passar por ela. Pelos vistos, é também o que se passa com a rapariga que a revista Time elegeu como personalidade do ano, Greta Thunberg, para alguns a Medusa dos tempos modernos.

O que é mais espantoso no fenómeno é a violência da rejeição por certos quadrantes e pessoas. A intensidade da coisa indica que ultrapassámos o nível meramente ideológico e que penetrámos em camadas mais interiores das mentes contemporâneas.

O que não deixa de ser interessante na sua liquidez. E se é líquido, eu bebo, parafraseando um célebre presidente brasileiro. E bebo porque se trata de um meio, de uma porta, para tomar o pulso ao doente. Greta, enquanto sintoma, é bem mais interessante do que como activista. Ou seja, a reacção é mais interessante que a acção.

O que Thunberg diz já tinha sido dito e repetido por pessoas com mais credibilidade, por relatórios científicos, pelo senso comum que respira o ar miserável das nossas cidades e se banha no plástico dos mares.

Mas o que aqui existe de inusual é ser uma adolescente, sem papas na língua, usando mesmo de alguma brusquidão, a enfrentar os poderes do mundo. Isto é, o valor do topos discursivo, do lugar que origina o discurso e que Foucault incensou, perdeu grande parte da sua importância.

Parece que não mas isto incomoda. E incomoda, sobretudo, de forma inconsciente. A reacção de Bolsonaro é a mais sintomática: chamou-lhe “pirralha”, ou seja, uma miúda que se põe em bicos dos pés, que opina sobre o que não tem idade nem estatuto para isso, o que não teria lugar num mundo “normal”. Contudo, com presidentes como Bolsonaro ou Trump, primeiros-ministros como Boris Johnson, quem pode dizer que vivemos num mundo “normal”?

Greta Thunberg é o inverso destes novos monstros e por isso ela é, de algum modo, monstruosa. Eles não têm mais verve que ela, não raciocinam melhor que ela, não a conseguiriam bater num debate. Por isso, ela desmascara o nível a que nos rebaixaram. Para enfrentar idiotas, negacionistas, estúpidos, nada melhor que uma criança, alguém que argumenta com a mesma violência e simplicidade, já que o discurso racional se tem revelado impotente.

Greta nivela as coisas, apoiada na certeza de ser quase ainda uma criança. Os outros, os que mandam, os que sujam e poluem, enquanto metem dinheiro em vários bolsos, sentem-se descalços perante esta investida. E muitos outros neste mundo fora pressentiram com horror que a actividade de Greta nos faz ver, antes de mais, que os nossos reis vão nus e nós somos marionetas impotentes. E, de facto, é nessa constatação de impotência que se deve procurar as razões do ódio à Greta.

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