O homem de Deus

[dropcap]N[/dropcap]inguém é ninguém. Só Deus é.” Gritava um homem com um megafone numa rua do centro do Rio de Janeiro, enfiado dentro de um cartaz que ostentava em letras garrafais, à frente e atrás, “Deus é, mais ninguém”. Todas as manhãs e todas as tardes, se não chovesse, ali estava aquela criatura na Rua dos Inválidos, que liga a Rua Frei Caneca à rua Riachuelo, junto à Lapa e à Praça da República. “Quem segue a si mesmo, segue o diabo”, continuava gritando pela rua. Muitas vezes, era com lágrimas nos olhos que gritava a salvação do homem. “Sem Deus, o homem caminha como um cego sem bengala, condenado a cair no abismo.” Dia após dia, durante anos, aquele homem vinha para a rua dos Inválidos caminhando e gritando para salvar o homem. Nada o demovia. Nem mesmo quando chegou a ser maltratado por moleques. Quanto a ser maltratado pelos olhares e piadas diariamente, já nem dava importância. A todos reagia com a benevolência e a compreensão que só existe no Novo Testamento.

Não se sabe bem qual é o seu nome, pois tal como Saulo que virou Paulo, também se dizia dele que antes de ver a Deus, era um outro homem, com outro nome e uma família, que deixou para trás, para pregar a palavra de Jesus. Levou a sério as palavras do Novo Testamento, no Evangelho de São Lucas, acerca da dificuldade de ser discípulo de Jesus, que para segui-Lo teria de deixar todos os laços humanos de filiação. Se não podemos saber o seu nome ao certo – embora se apresentasse como sendo Lucas –, aqui e agora, neste momento em que o vemos caminhar pela rua dos Inválidos, estamos diante de um homem com mais de sessenta anos, branco e magro, com cabelos grisalhos encaracolados, que desperta a ternura em quem consegue reparar nele para além das palavras, para além da sua compulsão pela salvação dos homens. Há neste homem uma fragilidade maior do que naqueles que passam por ele sem reparar ou olhando-o com escárnio. A segurança com que se move, derivada da crença inabalável em Deus, a fúria com que tenta salvar os homens, tem como fundo uma tristeza por este mundo onde se sente preso. É neste nosso mundo, sem grades que não sejam a gravidade e a esfericidade, que este homem cumpre a sua pena. E, enquanto a cumpre, tenta salvar os outros prisioneiros, abrir-lhes os olhos, mostrar-lhes que há vida para além do mundo.

Um dia, a vida fez com que aparecesse na mesma rua dos Inválidos um jovem, também dentro de um cartaz, como ele, embora sem megafone e sem usar a voz, passeando para trás e para frente a evidência do mundo, a retórica mais palpável da prisão em que Lucas diz que vivemos: “Mente Aberta SexShop / Os corpos também sonham”. Este rapaz, contrariamente ao cavaleiro da fé, não tinha nem segurança nem fragilidade, fazia de cartaz com pernas por um mísero salário, que a loja lhe pagava ao fim do dia. O seu andar não revelava a segurança da fé em Deus, mas a insegurança de um salário que não dava para viver condignamente.

Quando se cruzaram pela primeira vez na rua, o rapaz olhou Lucas com o espanto do prisioneiro que escuta alguém a falar da liberdade. O homem de Deus, por seu lado, engasgou-se, as palavras embrulharam-se e os olhos ficaram húmidos, como os campos de inverno no sul, cobertos de tristeza pela manhã. A vida vinha agora pôr a fé daquele homem à prova. Ao invés de lhe mostrar alguém a aproximar-se de Deus, a juntar-se a ele e a multiplicar a voz de Deus, a vida mostra-lhe alguém a promover o sexo, alguém a convidar os homens a descerem até à escuridão da carne.

Por um instante, que ainda não se sabe quanto tempo foi, o homem de Deus parou, calou-se, tentou entrever o céu por entre os prédios, como se escutasse uma palavra ou pudesse ver um raio fritar o céu. Suportou anos a fio a indiferença com que o trataram, os maus tratos, os impropérios e as gargalhadas atiradas pelos ignorantes, mas como suportar a fé ao contrário? Como suportar esta traição de Deus? Como não nos condoermos por aquele homem, ali, sozinho, triste, dentro de um cartaz de Deus, com as pernas magras paradas, o megafone sem som e lágrimas nos olhos, espelhando a tristeza que há no mundo? Talvez tenha sido aquele dia, o mais vulnerável da vida de Lucas; talvez num outro dia qualquer a propaganda da Sexshop, imitando o seu método, passeando dentro de um cartaz, não lhe causasse tanta afectação, mas a verdade é que depois desse dia nunca mais se viu o cavaleiro da fé na rua dos Inválidos ou em qualquer outra nas imediações. A evidência do corpo destruiu a inabalável crença em Deus. Lucas entendeu que a cegueira não tem cura e recolheu a fé para si mesmo, aceitando a injustiça da pena que cumpre no mundo como uma tarefa que tem de cumprir a sós. E quem se ria dele, sente-lhe agora a falta.

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