EntrevistaFernando Rosas, historiador: “O mundo está muito perigoso” Andreia Sofia Silva - 9 Out 2019 Professor catedrático da Universidade Nova de Lisboa na área da história contemporânea e dirigente político, Fernando Rosas assume continuar a admirar Mao Tse-Tung pela mão de ferro com que liderou uma revolução e um país. Contudo, 70 anos depois do estabelecimento da República Popular da China, o académico aponta as falhas de um sistema onde diz existir um “capitalismo desenfreado”. Sobre Hong Kong, Fernando Rosas assegura que as tropas chinesas vão invadir o território mais cedo ou mais tarde, caso continuem os protestos Que China temos hoje, 70 anos depois da implantação da República Popular? [dropcap]A[/dropcap] história da China contemporânea acompanha de uma forma muito singular a cronologia do século XX. A primeira metade do século XX é, na China, um período de longa guerra civil, desde a implementação da República em 1911, os movimentos nacionalistas de 1919, a seguir à guerra, contra o Tratado de Versailles. É a guerra civil, primeiro contra os senhores da guerra, depois entre o Kuomitang e o exército popular do Partido Comunista Chinês (PCC), e depois contra os japoneses. Derrotados os japoneses em 1945 estende-se o período final de guerra civil até 1949, que leva à tomada de poder pelo PCC e à proclamação da República Popular da China (RPC). E aí inicia-se um novo capítulo da história. A segunda metade do século XX é uma metade também muito conturbada de experiências várias de realização do socialismo. De 1949 até ao início dos anos 60, seguindo o modelo soviético adaptando-o à China, e depois, sob o impulso de Mao Tse-tung surge a reacção ao modelo soviético, com o diferendo sino-soviético e, mais do que isso, o ataque à reprodução desse modelo na China, com a Revolução Cultural. Esta foi uma tentativa de evitar a reprodução dos aspectos mais controversos do modelo soviético, e desaguou no grande caos da guerra civil que foi a Revolução Cultural e que levou na parte final à derrota política dos seus dirigentes, o Bando dos Quatro. Depois da Revolução Cultural, a China entra num novo período. (O fim da Revolução Cultural) levou a uma situação inteiramente nova do ponto de vista histórico. Ao contrário da URSS, onde houve uma implosão do regime e uma restauração quase brutal e mafiosa do capitalismo sem regras, e que ainda hoje marca muito a vida política, económica e social da Federação Russa, na China, como que se antecipando a esse tipo de efeito, o PCC retoma o controlo da situação após a Revolução Cultural, reacende esse velho camaleão da política chinesa que é Deng Xiaoping, que reaparece novamente depois do período de desgraça da Revolução Cultural, e inicia uma experiência que não tinha paralelo, que era uma restauração do capitalismo dirigida pelo próprio PCC, onde o Estado mantém firmemente as rédeas do poder de partido único, sem concessões. Veja-se aliás Tiananmen e a repressão… foi a última oportunidade de mudar alguma coisa. Simultaneamente, sob a direcção do PCC e do Estado, dá-se uma restauração do capitalismo em força. Que dura até aos dias de hoje. A China é uma potência riquíssima. Transformou-se a China, que é uma espécie de ditadura de partido único com capitalismo sob a tutela do Estado, e fez-se dela novamente uma grande potência. Esta estratégia deu origem a um crescimento económico espantoso, sobretudo no período inicial em que se partia de baixo, e regista-se agora um abrandamento, claro. Mas o actual regime reúne os dois piores aspectos dos dois regimes que conjuga. Em que sentido? A repressão do partido único e o monolitismo das ditaduras de modelo soviético e, até certo ponto, a selvajaria de um capitalismo com poucas regras onde não há liberdade sindical. Isso deu origem na China a uma coisa pouco tratada no Ocidente que é uma forte contestação social contra a expropriação de terras e brutais horários de trabalho. Houve alguns protestos, aliás. Vários, alguns de grande dimensão, mas que não chegam cá e porque os países capitalistas do Ocidente estão muito interessados em fazer negócio com a China, que se tornou num gigantesco mercado e uma potência económica mundial que ultrapassou em termos económicos os EUA. Do ponto de vista económico a China está no primeiro lugar, do ponto de vista militar não, e digamos que isso cria uma zona de grande instabilidade mundial. O mundo está muito perigoso. Essa hegemonia militar pode acontecer dentro de alguns anos? Claro. Repare: a China já está em primeiro nas tecnologias informáticas. O armamento do futuro é isso, a computação, a inteligência artificial. Eles estão muito avançados e é uma questão de tempo. Tanto mais que, para manter um arsenal militar de ponta, como tem os EUA neste momento, é preciso ter uma capacidade financeira que, neste momento, só os EUA e a China têm. Só que a China está a crescer, e é um desafiador importantíssimo do ponto de vista da partilha mundial de influência, mas o império americano tende a baixar. O novo império chinês volta a ser o centro do mundo, como na antiguidade, com o Império do Meio. Mas isso cria uma grande instabilidade. A que nível? Desde logo com a guerra comercial, que está aí e não está para acabar. A rivalidade dos EUA com o Japão começou com uma guerra comercial. Quem se candidata hoje a controlar o que antes se chamava o quadrante da prosperidade, que era aquele litoral asiático não é o Japão, mas a China. E a China não é só nessa área, mas também em África e na América Latina. É curioso porque a China, com esta estratégia de restauração do capitalismo sob a direcção do Estado e do partido, fez crescer muito a economia que tem necessidades brutais de matérias-primas e de alimentos. A China faz uma política em África…no tempo da minha juventude, com o Zhou Enlai (ex-primeiro-ministro) a passear em África e a concorrer com os soviéticos e os americanos por uma maior influência em África, a China oferecia aos países africanos a perspectiva da independência e da revolução nacional. Mas essa influência faz-se hoje de forma diferente. A China hoje leva edifícios e caminhos de ferro, e estabelece parcerias para sacar a madeira, a soja, o milho, o trigo, tudo o que são matérias-primas e bens alimentares. A China está novamente em força em África, mas desta vez não é para fazer a revolução, é para extrair tudo o que puder de África para sustentar o crescimento. O abandono da agricultura na China levou também a problemas na produção agrícola. A fuga dos campos para as cidades dificultou também essa modernização da agricultura, e é necessário importar, seja da América Latina ou de África. Oferecem-se serviços em troca disso. Este modelo chinês tem, de facto, o pior dos dois lados, mas essa é outra parte da história. Um dia este modelo vai ter problemas sociais e políticos sérios. Partindo deste ponto de vista, Xi Jinping defendeu a ideologia “socialismo com características chinesas”. Podemos estar perante um novo modelo? Acho que sim. Aliás, acho que esse modelo de um socialismo com características chinesas é o nome que Deng Xiaoping pôs ao comunismo chinês, praticamente desde a viragem (do país). É a direcção do Estado que se mantém ferreamente nas mãos do PCC e num sector importante da economia. Mas permite-se, sob a direcção do partido, o relativamente livre desenvolvimento das relações capitalistas. Enriquecer é uma coisa boa, como diria Deng Xiaoping. Acontece que isso deu origem a uma grande corrupção na China. Que tem vindo a ser travada. Esta direcção do actual presidente tenta combater a corrupção através de uma aparência de regresso a certos princípios do período do maoísmo, com o reforço da direcção política do partido sob o Estado, o combate à corrupção, o regresso a certas normas de vida política muito características da China maoista, como viver com simplicidade, ter pensamentos elevados. Há algumas coisas que são trazidas a título de reforçar o partido e o Estado. Mas acho que há um endurecimento da situação política sem mudança de modelo. É uma falha não haver reformas políticas? O partido manda no Estado, não há pluralismo partidário, qualquer movimento da oposição é severamente reprimido. Esse é o modelo chinês, é a continuação da ditadura política associada a velhas normas do capitalismo e do capitalismo mais desenfreado, porque não conta com um movimento sindical capaz de o moderar e de lhe fazer frente. É um modelo pelo qual tenho muito pouca simpatia e que se aguenta pela repressão. E qualquer dia os tanques entram em Hong Kong, acho que já faltou mais. E se isso acontecer não é uma violação da Lei Básica e da Declaração Conjunta? Na prática, o que pode acontecer? Claro que é. Mas se aquilo estiver mesmo em risco, e se em Hong Kong houver ou crescer um risco de separação da RPC não tenho dúvidas que eles entram, e entram como em Tiannamen. Não se iluda, a reacção do mundo ocidental vai ser retórica, ninguém se vai meter numa guerra com a China por causa de Hong Kong. Se há coisa que o povo de Hong Kong pode ter certeza é que no caso de um esmagamento da autonomia do território ninguém vai querer arriscar os negócios com a China por causa disso. Vai haver barulho durante um tempo, mas não mais do que isso. Quando a China chegar à conclusão que aquilo não acaba com o tempo, mas que tende a crescer e a pôr em risco a ligação com a China, eles intervêm. É certo que isso lhes custa algum desprestígio internacional, mas ninguém vai querer perder os negócios fabulosos por causa disso. E o que resta, depois disso, do conceito ‘Um País, Dois Sistemas’? E pergunto-lhe isso também pensando no caso de Macau. Em Macau, apesar dos acontecimentos de 1966 (o 1,2,3), não há uma tradição democrática e de luta como há em Hong Kong, que é uma cidade muito particular, com uma vida económica e política muitíssimo dinâmica. Acho que em Macau não tem tido razões para muita inquietação. Mas se o exército entra em Hong Kong, o conceito ‘Um País, Dois Sistemas’ deixa de ter validade prática. Abre-se um precedente. Sim, abre-se obviamente um precedente, sem dúvidas. Mas repare: por isso é que eles ainda não entraram, porque sabem que isso cria uma situação política muito delicada. Mas eles não vão consentir o risco de separação de Hong Kong da China. Separação no sentido de dizer: “aqui é uma democracia”. Isso seria um precedente para a própria China, uma contaminação. Se eles permitem que a democracia viva com relativa autonomia em Hong Kong, e depois Cantão? E depois, e depois… Taiwan, também pode ter aí efeito. Como vão permitir isso? Não vão permitir. Acho que a China está a ver se aquilo acalma. É como a praça de Tiannamen, quantas semanas esperaram? Quando viram que os protestos começavam a afectar o próprio comité central do PCC, meteram os tanques. Hong Kong está a lutar pela sua autonomia, e muito bem. Mas é uma ilusão os manifestantes andarem a passear-se com as bandeiras dos EUA e de Israel. Estão convencidos que os EUA são uma democracia (risos), acham que o Trump é um aliado deles, e, pior ainda, os israelitas. Em Israel é que não há mesmo democracia nenhuma, é uma espécie de apartheid. Há uma democracia, mas apenas para os israelitas. Xi Jinping é um novo Mao, como muitos analistas afirmam? Acho que não tem nada a ver. Ele pode tentar recuperar a grande popularidade que o Mao teve na China, como ícone, com o culto da personalidade, mas isso tem muito a ver com a cultura chinesa e com sociedades muito ligadas ao campesinato. Na ausência de saber ler e escrever, a recorrência à imagem, à pintura e aos ícones era muito usada na luta política. Mas de maoismo isto não tem nada. O maoismo era a igualdade, o trabalho no campo, e existia um certo fechamento face ao mundo. A China hoje é um império dirigido pelo PCC, uma grande potência imperial à conquista do lugar de potência mundial. Na sua periferia não vai permitir conversas, e em relação a Taiwan vamos ver o tempo que aquilo dura. O Presidente chinês defendeu a aplicação do conceito de ‘Um País, Dois Sistemas’ incluindo Taiwan. O que poderá sair daqui? Repare: na realidade aquilo é território chinês, é algo mantido durante a Guerra Fria… Com cada vez menos parceiros internacionais. Claro. Sobre a Formosa sempre pensei que é uma questão de tempo a integração na China. E esse conceito aplicado a Taiwan é uma forma de facilitar a coisa. Isso vai depender do poder da China como poder imperial e da capacidade de os EUA poderem ir para a guerra por causa de Taiwan. Houve tempos em que iria. Justifica-se, nos dias de hoje? Pois, exactamente (risos). Esse é que é o problema, assim como não vai para a guerra por causa de Hong Kong. O conceito de ‘Um País, Dois Sistemas’ é uma maneira de facilitar a integração durante um tempo. Em Hong Kong existe uma sociedade com uma democracia enraizada e um regime liberal, mas a Formosa, durante muito tempo, foi uma ditadura. A ideia é integrar tudo aquilo de acordo com os prazos (2047 para Hong Kong, 2049 para Macau). Se Hong Kong se bater pela autonomia, quem é que os vai apoiar? Eles não podem contar muito com a comunidade internacional, pois os negócios com a China são arrebatadores. Apesar do posicionamento da União Europeia contra a actuação policial e do Governo. Vão chorar rios de lágrimas de crocodilo, mas não fazem nada. Acho mesmo que os democratas de Hong Kong, o movimento da juventude, deviam forçar o melhor tipo de situação interna. Mas deviam evitar romper a corda, porque se rompem a corda, (os chineses) entram por ali dentro e acabou. A melhor via era tentar manter o que têm e alargar a autonomia e capacidade de iniciativa. Numa situação de ruptura não têm solidariedade internacional. No que diz respeito às regiões administrativas especiais, o modelo tem funcionado bem, para ambos os lados? No que toca a Macau tem funcionado bem no sentido em que Portugal desaparece cada vez mais de Macau. Para os chineses tem funcionado muito bem, mas aquilo era uma espécie de colónia. A presença portuguesa em Macau não pode ter pretensões…quer dizer, a pretensão que Portugal pode querer para Macau é manter uma presença cultural e alguma presença económica. Os chineses não precisam de Macau…Hong Kong ainda tem a bolsa de valores. Mas Macau não tem um peso económico determinante para a China. O território funciona como plataforma de comércio. Claro, e isso tem interesse, e a China pode usar Macau como essa plataforma. Mas os interesses que Portugal pode ter é manter uma presença cultural e uma porta aberta para a China. Macau vai progressivamente integrar-se na China e não estou a ver que haja possibilidade de ser de outra maneira. No que diz respeito à protecção dos direitos, liberdades e garantias da população, e aos portadores de passaporte português, há margem para Portugal intervir? Portugal, à luz da Declaração Conjunta, deve intervir para a defesa desses direitos sempre que houver razões de queixa. Mas essa deve ser uma tarefa sobretudo dos habitantes de Macau, pois aquilo é território da China. Em Hong Kong não são os ingleses que protegem os seus habitantes, são eles próprios que se protegem e muito bem. Mas muitas personalidades, tal como Chris Patten, o último governador, têm falado sobre o que se passa. Os ingleses dizem umas coisas, mas também não estão interessados em prejudicar as relações com a China. No que diz respeito ao processo de integração, se as coisas correrem bem, a China não tem pressa nisso, porque podem ser portas de comércio e porque falta a Formosa. Eles querem poder estender essa estratégia a Taiwan para, finalmente, unificar todo o território da China. Isso tem cada vez menos a ver com portugueses e ingleses. Portugal deve, moral e politicamente, ajudar, isso sem dúvida nenhuma, se no caso de Macau essa questão se colocar. Voltemos ao maoismo. Esteve ligado à fundação do partido PCTP-MRPP, fortemente influenciado depois da passagem de Arnaldo Matos por Macau. O que recorda desses tempos e da influência de Macau? O partido foi fundado em 1970, ainda na clandestinidade. Na altura ainda havia a Revolução Cultural, o Arnaldo Matos tinha feito o serviço militar em Macau e tinha trazido muitas daquelas ideias e da literatura da Revolução Cultural para cá. Desde o início que se distinguiu o PCTP-MRPP clandestino de outros partidos anti-fascistas da altura, através da sua característica maoista muito marcada pela sua Revolução Cultural. Mesmo na clandestinidade, o PCTP-MRPP foi o único partido maoista que existiu em Portugal. Tive sempre muito contacto com os textos do Mao Tse-tung, a literatura chinesa e aquelas coisas que vinham de França, das livrarias, na época da ditadura. Como entravam no país? Vinham escondidas nos carros e entravam em Portugal. Circulavam, sobretudo no meio dos estudantes. O Mao Tse-tung é uma figura histórica pela qual eu continuo a ter um enorme respeito. Um homem que dirige vitoriosamente uma revolução desde os anos 20 até 1945 e toma o poder, na China, não é um homem qualquer do ponto de vista da história política. Apesar dos milhões de mortos, da fome. A revolução chinesa vai de 1911 até 1949. A segunda metade do século é a tentativa de encontrar um caminho. Na busca desse caminho houve erros, catástrofes, crimes, e o que é um facto é que isso terminou nesta China dirigida pelo PCC que é uma coisa original. O Mao Tse-tung teve um papel nisso tudo. Ele teve algum mérito em tentar combater o modelo soviético em nome de um outro, mas o outro acabou no caos, nos abusos, nas fomes. Diria que Mao Tse-tung foi um dirigente histórico da revolução chinesa que continua a ser uma personagem central na história da moderna China, mas como governante… Não tinha muito jeito para a economia. Exactamente. Primeiro tentaram impor o modelo soviético, com a indústria pesada, e as pessoas tinham fome. Não havia bens de consumo. Mao Tse-tung tentou rectificar com o Grande Salto em Frente, onde não havia grandes siderurgias e toda a gente tinha um forno na aldeia. Um desastre. A busca dele era de um socialismo de base, um ideal que não repetisse os erros tremendos da URSS. Mas depois degenerou na grande tragédia que foi a Revolução Cultural. E dali o que saiu, foi que se acabou a loucura e decidiu-se que o PCC iria dirigir o caminho e o capitalismo. E acabou por sair um monstro que junta as piores coisas dos dois mundos, pois do capitalismo poderia ter surgido a liberdade sindical, o pluralismo político. Mas não. O que resta hoje do maoismo? É apenas uma memória? Não. O maoismo não existe como corrente política, foi uma experiência histórica que entusiasmou muitos movimentos. A partir do Maio de 1968, no Ocidente, a ideia era que podia haver um socialismo plurificado, bom, que vinha da recusa do modelo pós-estalinista da URSS, com um modelo baseado no movimento das massas, da iniciativa popular, na recusa das oligarquias e desigualdades, e buscou-se no maoismo essa inspiração. Mas o mundo mudou, hoje há outras prioridades, outras esperanças.