Ser maior da actualidade?

[dropcap]A[/dropcap] “actualidade” foi desde sempre privilegiada. Na ontologia ingénua em que vivemos, na “metafísica natural”, “o que está a dar” tem mais ser do que o que não está a dar.

Seja nas notícias, seja em qualquer forma de espectáculo, seja individual e colectivo, cada momento presente é mais importante do que “o que passou” e do “que ainda não é problema”. A actualidade, o presente, é continuamente actualizado, está submetido a um updating que reconstitui, reforma, renova o próprio sistema da realidade ou então começa tudo de novo. O presente é mais do que o passado e do que o futuro. O pragmatismo acentua esta valência. É agora e não mais tarde. O que foi mesmo agora, mas há pouco, já não se projecta sobre a nossa realidade da mesma maneira. O que importa e tem valor é este istmo entre o mar do passado e o mar do futuro ou numa outra imagem fluvial, a crista da onda em que surfamos e que de cada vez a cada instante se vai formando é mais importante do que as encostas de moles de água que temos atrás das costas e à nossa frente. O passado mora lá trás e o futuro a Deus pertence. O presente é que é. O passado mesmo há pouco não é já e o futuro não é ainda. A interpretação do ser do presente é concomitante à interpretação do não ser do passado e não ser do futuro, respectivamente não ser já e não ser ainda. Vive-se um dia de cada.

Mas não se pode negar a realidade do futuro. É uma realidade com que contamos, bem na esperança. Mal, na desesperança. É inegável que temos saudades do passado ou o queremos esquecer ou ainda que somos o que temos sido, mesmo quando estamos numa relação de indiferença com o passado ou até só de aparente indiferença. Nós existimos tão pouco só no ápice do presente como também para estarmos na crista da onda, no cume da montanha, na fronteira, no sítio exacto em que estamos numa deslocação ou viagem, precisamos sempre do ponto de partida e do ponto de chegada, das encostas, do vale, da mole de água que faz inchar a onda e da descida em direcção à beira mar ou lá para onde nos leva a onda. O momento presente, ensanduichado entre o passado, mesmo o passado há pouco, agora mesmo, e o futuro daqui a nada, do que está prestes a “rebentar”, a acontecer, o instante presente da actualidade mais actual que existe, não poderia nunca ser nem existir, sem o passado há pouco nem o futuro daqui a nada.

É difícil perceber quem faz a actualização de cada novo momento presente que simplesmente tudo renova e, de facto, tudo renova sem excepção. O mais das vezes repete o que já está dado, ao permitir que continue a ser o que tem sido, sendo ou não bom o que é e tem sido. Outras vezes, permite começar de novo. Outras ainda dá a compreender que é o princípio do fim, que tudo muita, que tudo vai ser diferente e nada vai ficar como dantes. Custa perceber que assim é, que as coisas acabam e custa também perceber que as coisas se renovam ou nascem coisas novas.

A actualidade do presente dura um instante, mas o próprio presente pode durar mais do que instantes, pode ser a própria qualidade da duração natural das situações, do que entendemos ser a constituição do tempo da duração qualitativa das coisas.

As últimas notícias sabem-se na hora, na última hora. Cortam-se metas a cada instante. Os relógios marcam o tempo ao segundo e décimo de segundo já na vida quotidiana. Por maioria de razão o tempo dos atletas, da indústria de ponta, é ainda mais subdividido. Acontecem coisas dignas de registo em tempos subliminares de que não damos conta. Mas a actualidade pode ser também a do semestre lectivo, do tempo da faculdade ou da qualidade do tempo que temos quando somos estudantes. Há o tempo da época desportiva, o ano civil, religioso, a agenda política, os longos prazos mas finitos dos recursos do planeta, a duração da vida humana e de gerações e gerações de vidas humanas.

O que define a actualidade ou o sentido de uma época não se reduz a um instante. Não se distende também apenas a uma duração somente quantitativa. As durações dos objectos temporais são diferentes entre si e resultam da qualidade constitutiva do tempo que é o seu. Ou seja, de algum modo fazemos valer o momento futuro imediato como já a ser integrado no momento actualíssimo do presente. Acordamos, levantamo-nos, bebemos café, tomamos banho, saímos de casa para o trabalho. Qualquer que seja a série de acontecimentos distribuídos pelos seus momentos, haja ou não conteúdos em agenda, eles estão já pressupostos e é com essa pretensão que acordamos e nos deslocamos em casa, distribuindo-nos pelas divisões onde os rápidos momentos da manhã são vividos: quarto, cozinha, casa de banho, escadas, porta da rua, caminhos, partidas e chegadas. O dia inteiro está diante de nós como o objecto temporal que se oferece a ser, a que resistimos com perseverança ou que acolhemos suavemente como algo que desliza bem ou nos faz deslizar bem no seu fluxo. Não precisamos de ler a agenda ou de passar em revista mentalmente o que vamos fazer, o que é importante nesse dia, hoje. Até podemos esquecer-nos do que temos para fazer e podemos não fazer o que era suposto fazermos. No princípio do dia, está o dia para viver, quer aconteça quando ainda é noite ou já a meio da manhã, tarde ou à hora do jantar. Podemos ter um dia longo ou um dia curto. Ainda assim, constitui-se sempre sem se saber bem como a ideia de que há para ser ou que não temos já tempo, que é também uma forma de percebermos que estamos virados para o futuro. Estamos sempre virados para o futuro, quer com ele cheguem conteúdos ou não cheguem conteúdos. O tempo da chegada e da partida de pessoas, situações, circunstâncias ou conjunturas, não pode ser confundido com o próprio ser do tempo que é sempre e continuamente a da eterna partida, passagem irreversível de tudo, simplesmente tudo. [Continua].

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