Sexanálise VozesHong Kong e o Corpo do Protesto Tânia dos Santos - 5 Set 2019 [dropcap]H[/dropcap]ong Kong passa um Verão de profundo descontentamento. Para além dos argumentos pró-democracia e as tensões associadas a um plano (aparentemente simples) de um país, dois sistemas, outras tensões têm surgido. As tensões do sexo e do género são invariavelmente transversais a tudo. A 28 de Agosto dezenas de milhar de protestantes juntaram-se em Hong Kong para reivindicar direitos humanos básicos que o uso do corpo no protesto parece não pressupor. Dois casos de violência sexual foram divulgados no contexto do descontentamento popular pelo regime. A vulnerabilidade dos corpos tidos como femininos tem sido amplamente discutida num lugar onde as mulheres (jovens) são tidas como materialistas e dependentes, mas que agora têm mostrado novas formas de feminilidade. Um dos acontecimentos que despoletou esta discussão foi a da alegada violência sexual pela polícia, por terem avançado com a busca completa a uma mulher que tinha sido detida. Despiram-na e exigiram avaliar todos os seus recantos à procura de… não se sabe bem de quê. O caso veio a público por ela, que se quis esconder no anonimato. Este episódio tão particularizado mostra a humilhação a que os corpos e as mentes estão sujeitos quando nos vemos confrontados com a autoridade. Não se sabe se haverá outros casos assim – de abuso de poder e de completo desrespeito pela dignidade do corpo e do sexo do outro. Momentos de crise, e este em particular, vêem o materializar de representações que subtilmente existiam, de ideias liberais, democráticas – e do género, de como este é performado e contestado. Não é por acaso que este episódio tenha gerado tanta insatisfação. As protestantes estavam sedentas por pôr na agenda a preocupação que é a normalização da violência sexual contra as mulheres. Que não se cinge à arena do protesto citadino e policial, mas também nas redes sociais, onde mulheres têm sido atacadas pelos chamados ‘trolls pró-Beijing’. O nível de discussão digital atinge níveis patéticos, com a constante humilhação sobre o significado de mulher e uma total ausência de discussão ideológica (que as ideias pró-democracia em conflito com o socialismo com características chinesas poderiam supor). O movimento global recente do #metoo serviu de inspiração para o novo movimento de igualdade de género em protesto – #protestoo. Tal como se estão a importar os valores democráticos, este é só mais um pacote de ideias. Mais um sintoma de como certos ideais se estão a universalizar e a serem homogeneizados. Só que exportar ideais liberais e até direitos humanos como máximas universais pode induzir à falsa crença que estes são de ‘um tamanho e que cabem a todos’. O que pode não ser verdade. Acho que a história do imperialismo americano tem sido muito esclarecedora de como a homogeneização ideológica global só pode acabar mal. Talvez toda esta situação de Hong Kong seja demasiado complexa e não haja uma solução milagrosa para resolver o descontentamento popular – seja na luta do género ou no estabelecimento de ideais democráticos (que bem sabemos que pelo mundo fora, estão pela hora da morte). Receio que estejamos perante uma tentativa de exaltação de ideais (neo)liberais de forma acrítica e assimiladora, mesmo que mascarados por valores incontornáveis como os dos direitos humanos. A luta popular é sempre admirável e não acredito que o progresso possa existir sem discussão ou confronto. Fica para sempre a questão de como a revolução política e social pode ser eficaz em tempos de globalização e homogeneização.