VozesNo meio dos impérios João Luz - 2 Set 2019 [dropcap]C[/dropcap]oração GT acelera prego a fundo, ardente de desejo de colisão. Mira apontada ao ponto que separa os dois eixos que dominam o mundo, bisturi que separa os dois monstros siameses. Velocidade que galga estrada rumo à inevitável vitória contra as forças do Mal e do Passado. A velha dicotomia relativista de escolha necessária do mal menor tem os dias contados, o mundo a branco e preto onde se escolhe um dos impérios, arrastando princípios e decência para a sarjeta, não consegue conter a erupção do vulcão multicolor. Vivemos ensanduichados entre impérios. O mero desdém por autocracia e absolutismo não é suficiente neste novo mundo ultra-político e, como tal, monocromático. Hitler ou Estaline, cancro no pâncreas ou tumor cerebral? Se crítico um deve ser porque concordo com o outro. É assim que se justificam massacres, simplesmente entoando “então e não sei o quê?”, desviando a atenção do essencial com o whataboutism de que falam os anglófonos. Não tenho nem quero escolher entre os Estados Unidos e a China. Apontar os crimes e atentados aos direitos humanos de um, não iliba as atrocidades do outro. Que raio de lógica é esta?! É a lógica de caixa de comentário de rede social, o mecanismo primário de defesa do status quo, a relativização apologética dos fanáticos que revitalizaram idiotas como os terraplanistas e os movimentos anti-conhecimento. Prefiro a fome a ver-me forçado à escolha entre uma sandes de merda e uma tosta de bosta. Permitam-me um sonho violento de visões tensas de pré-apocalipse. Quem vive sem solo debaixo dos pés, sem contratos, sem tecto fixo, sem projectos de longo prazo, sem confiança no poder, não tem de escolher o menor de dois males. Esse conformismo está reservado para a comodidade de quem não quer chatices. O novo século trouxe-nos a primeira geração que é mais pobre que os seus pais em muito tempo, depois do século do grande crescimento económico e tecnológico. Uma geração perdida que vive a angústia da aniquilação do planeta, que arde com as florestas tropicais e derrete com os glaciares. Esta inquietude é gasolina, é cisão do átomo, é ansiedade que não permite concessões a escolhas predeterminadas, nem meias verdades impostas que mancham a liberdade. O desespero é a exterminadora espada cuja lâmina anseia as carótidas dos dois dragões imperiais. Só sei que venceremos, não no sentido militar, não precisamos disso. A nossa “energia” simplesmente prevalecerá face aos monólitos do passado, o poder cinético da força dos tempos impele-nos, o “agora” está do nosso lado, nós somos o zeitgeist, o espírito dos tempos, a fruta madura da época. Cavalgamos juntos esse deslumbrante tsunami que vai destruir os edifícios bolorentos do relativismo burguês. (obrigado pela boleia, Hunter. Vou voltar ao volante). Atentem nesta geração que nasceu com a repulsa iconográfica à rebeldia mercantilizada do punk vendido pela H&M, à arte de rua abençoada pelo Estado, às golas altas das gerações que se esqueceram de como lutar contra os vampiros. Eles continuam a comer tudo, ainda com maior voracidade. A vossa revolução deu-nos o neoliberalismo e a prostração mansa que abriu portas ao renascimento do fascismo. As nossas paixões são destrutivas, temos a morte a dissolver debaixo da língua para mais rápida absorção. Sonhamos com novo terror jacobino, a purificação pelo fogo, a queda dos impérios. Todos! Não temos facínoras favoritos, nem atribuímos valor de mercado a sangue derramado. Preferimos pessoas que vendem no mercado a mercados que vendem pessoas. Mas nada disto é novo. Todos os sistemas calcinados precisam, de tempos a tempos, de um pontapé nos tomates, um murro certeiro no fígado inchado por vintages desferido por mãos gretadas por aguardente rasca para se lembrarem que estamos aqui e que não vamos a lado nenhum. Este texto não tem qualquer relação com o que se passa em Hong Kong, e está muito além dos protestos na região vizinha. Zoom out!