Estendais h | Artes, Letras e IdeiasNetflix and think (I) Gisela Casimiro - 4 Jul 2019 [dropcap]L[/dropcap]ife overtakes me (Quando a vida nos atraiçoa), é um documentário na Netflix sobre famílias de refugiados na Suécia, cujas crianças são afectadas pela Síndrome de Resignação, também apelidada de Síndrome de Desistência. Após passarem por uma situação traumática, as crianças começam por entrar num estado depressivo que se vai aprofundando até ser atingida a catatonia. Vão gradualmente perdendo o interesse em quaisquer actividades, deixando de abrir os olhos, comer, falar, mover-se, responder a estímulos. Passam a usar fraldas e a ser alimentadas por via intravenosa pelos pais, que se tornam ainda mais cuidadores, muitas vezes auxiliados por voluntários. Não é incomum que, ao assistir ao estado de deterioração de um dos irmãos/irmãs, outra ou outras crianças da família sucumbam eventualmente à síndrome. Este sono profundo, comatoso, pode durar seis meses ou mais de dois anos, sendo por vezes reversível, não sem que antes decorra um período de tempo considerável entre o resolver da situação instável e o convencerem-se, ou melhor, serem convencidos pelo que parece ser transmitido pelos pais: o sentimento, a certeza de que tudo está bem. Os pais parecem ter substituído o príncipe nas histórias de encantar. A deportação é o monstro/bruxa e o passaporte ou autorização de residência o beijo que quebra o feitiço. Há uma série de crianças e jovens adormecidos, esperando a salvação do asilo, a sua transformação de refugiados em cidadãos. Na sua obra-prima, A sangue frio (D. Quixote, tradução de Maria Isabel Braga, 2006), Truman Capote descreve como a tragédia que dilacerou a mais bem-amada família de Holcomb afectou gravemente quem teve o mínimo contacto quer com a família Clutter, quer com os despojos do seu brutal desaparecimento: “A mulher de Dewey passou pelo sono mas acordou ao senti-lo saltar da cama para atender mais uma vez o telefone. Ouviu também, no quarto onde dormiam os filhos, os soluços de um dos rapazinhos que chorava. «Seria o Paul?» Ele não era rabugento nem chorão, nunca! (…) Porém, nesse dia ao almoço desatara em soluços. A mãe não precisara de lhe perguntar a razão; sabia que, muito embora ele compreendesse vagamente o motivo de toda aquela confusão à sua volta, sentia-se inseguro ante as enervantes chamadas telefónicas, os estranhos que entravam em casa, os olhos fatigados e cheios de preocupação do pai.” Situações de racismo na escola (falamos de famílias arménias ou yazidi, por exemplo), criminalidade testemunhada (agressões e homicídios, as causas da fuga dos pais) parecem ser as causas traumáticas que iniciam este processo de fuga à realidade em crianças anteriormente activas e aparentemente saudáveis. Testes de reacção à dor e ao frio são executados regularmente, sem grande novidade. Ainda há muito para descobrir e confirmar relativamente a esta condição. Como em tudo, há quem questione se se trata de uma doença verdadeira, se os pais não estarão a envenenar os filhos, se não será uma estratégia para conseguir protecção e segurança, ou apenas mais uma distracção dos verdadeiros problemas quer dos suecos quer dos refugiados que acolhem. Ainda considerada uma condição rara e quase exclusiva à Suécia, sem razão aparente, certo é que existem relatos de algo semelhante nos campos de concentração Nazi. Detidos, migrantes, refugiados: esta condição começa a verificar-se também em crianças na Austrália. Quão contagiosos são a tristeza, o medo, o desespero, a falta de esperança? Quão sensíveis são estas crianças à verdade, de tal forma que já não basta ver ou ouvi-la, é fundamental senti-la? Entre a tristeza dilacerante e o pós-terror, é comovente e duro assistir ao definhar de qualquer forma de vida, sobretudo a que é mais promissora, mais cheia de energia, normalmente mais adaptável a mudanças. A perda das funções motoras e biológicas acompanha a perda da inocência. Recordemos o quadro Sleeping, de Paula Rego (1986), exemplo dessa quase imperceptível diferença entre perigo e paz. Crianças dormem junto a um arado, vigiadas por um pelicano (símbolo cristão do sacrifício de Cristo, da sua ressurreição e da de Lázaro). Duas crianças estão acordadas, uma enfrentando a ave e a outra virando costas às que dormem, encostada a uma árvore. Observamos ainda uma tartaruga, símbolo de imortalidade, de concentração, de regresso ao estado primordial. Até onde vamos para sobreviver? Além-fronteiras, fisicamente. Ao mais fundo de nós, mentalmente. Até onde tivermos de ir. Até onde nos levarem. Até não podermos mais. Somos, verdadeiramente, onde os nossos limites podem chegar. Na cama ou acompanhando a família em passeios e refeições, em cadeiras de rodas, a estes jovens são-lhes lidas histórias, cantados os parabéns, exercitados os músculos, escovados os dentes, afagados os cabelos. Só faltava aparecer Thom Yorke declarando I’ll take a quiet life, pedindo No alarms and no surprises, please. Bem que mereciam.