EntrevistaRicardo Araújo Pereira, humorista: “Somos o único animal que ri” Sofia Margarida Mota - 28 Jun 201928 Jun 2019 Ricardo Araújo Pereira está em Macau para apresentar “Uma conversa sobre assuntos”. O primeiro espectáculo está marcado para amanhã, às 20h, na Torre de Macau e o segundo para domingo, no Instituto Politécnico de Macau, às 18h. Num encontro com jornalistas, o humorista português falou da importância do riso, das concepções de comédia ao longo da história e da única coisa sobre a qual não consegue fazer piadas [dropcap]Q[/dropcap]uais as expectativas para os espectáculos aqui em Macau? Não tenho expectativas nenhumas. Esta é a minha maneira de viver, e é boa porque assim nunca temos grandes desilusões e temos só surpresas. A primeira surpresa foi o facto do primeiro espectáculo ter esgotado e depois as pessoas terem feito uma segunda sessão. Foi muito simpático. De que assuntos vai falar? Depende das pessoas, vai haver microfones na sala e as pessoas vão fazendo perguntas. É assim que este espectáculo funciona: as pessoas perguntam-me coisas e depois eu respondo. É bom que tenham coisas para perguntar. Venho de outro continente, venho com muita sabedoria acumulada e é muito importante que as pessoas tenham curiosidade para saber coisas sobre assuntos em geral. É a primeira vez que faço este espectáculo fora de Portugal. As pessoas perguntam tudo sobre o que lhes apetece e é mesmo isso. Perguntam sobre o meu trabalho, sobre o Benfica, sobre as minhas filhas, como sou em casa, o que lhes apetecer. Com nasceu este espectáculo? Há dois anos houve em Portugal aqueles grandes incêndios. Estava em casa a ver aquilo e pensei que gostava de fazer alguma coisa. O problema é que eu não sei fazer nada. Isso prejudica muito a minha capacidade para ajudar. Falei com a minha amiga e agente para saber se podíamos fazer uma série de espectáculos gratuitos nas zonas afectadas pelo fogo. Fizemos uns 14 e a receita revertia a favor das vítimas, dos bombeiros, etc.. Basicamente, sou eu a tentar responder a perguntas de pessoas. Às vezes dizendo coisas que já escrevi, fingindo que me estão a ocorrer na altura. Tendo em conta que a realidade de Macau não é bem a mesma da realidade portuguesa, como se preparou para este espectáculo? Sim, sim. Estudei muito sobre a actualidade de Macau, perguntem o que quiserem. (risos). Ainda bem que me avisou. Sobre o assunto China, como vê a ascensão do país na economia internacional e a guerra comercial que decorre com os Estados Unidos? Aqui, em relação a Macau, fico surpreendido por estar a decorrer um banho turco contínuo. A sensação que tenho é que para vir até aqui ao consulado, estive a comer o ar até aqui chegar para poder passar. Não sei como se aguenta este banho turco constante. Eu fico encharcado em suor ao fim de 30 segundos fora do hotel. Em relação à China e à guerra comercial, não tenho nada para dizer sobre o assunto, mas conheço. Mas não faço ideia. Tenho algum receio de que seja inútil competir numa guerra comercial com a China. Eles fazem coisas muito depressa e muito baratas e, portanto, é capaz de ser difícil. É um país muito grande, e não sei se o facto de o regime chinês ser este, digamos que com um défice democrático, ajuda economicamente porque é mais fácil manter pessoas com salários baixos e tal. Nessa medida, é interessante que o Trump esteja também a tentar instituir um sistema destes no Estados Unidos. Uma coisa assim mais pobre pode ser a resposta adequada. Sou a favor da democracia, está bem? FOTO: Sofia Margarida Mota Qual é o papel do humor na análise da actualidade? O papel do humor é fazer rir as pessoas. E há muitas pessoas que me perguntam: só? Acho que quem pergunta isso, em primeiro lugar nunca tentou fazer rir ninguém, e em segundo não está exactamente a ver o que é que o riso é. O riso é uma coisa demasiado importante para que as pessoas digam: “só?”. Para mim, o “só” fazer rir é a mesma coisa que dizer que aquilo entre o D. Pedro e a Dª. Inês era “só” amor. Ou parece que houve ali uma coisa entre 1939 e 1945 mas foi “só” uma guerra. O riso é muito importante, e é fascinante que os seres humanos riam. Acho extraordinário. Somos bichos que sabem que vão morrer, convivemos diariamente com essa informação e, portanto, é muito bizarro que seres nestas condições achem graça a seja o que for, que riam. Imagine que um condenado à morte está na sua cela e depois vai a andar até à cadeira eléctrica, e nesse percurso vai a rir à gargalhada. Acharíamos isso bizarro, absurdo. No entanto, isto é capaz de ser um bom resumo condensado do que é a nossa vida. Nós sabemos perfeitamente que vamos a caminho da cadeira eléctrica. É ainda mais aflitivo porque o condenado sabe exactamente qual é o dia em que vai ser frito e nós não. Pode ser agora. O certo é que vamos a rir no caminho. Há um humorista norte americano chamado Jack Douglas que tem um livro, a sua autobiografia, que se chama “Aconteceu-me uma coisa engraçada a caminho da campa”. Basicamente, é isso. Fazer rir as pessoas é uma coisa que me parece nobre até. Fico muito satisfeito que o papel do humor seja apenas esse, fazer rir. Às vezes, as pessoas têm a ideia, para mim errada, de que o humor consegue fazer coisas. Que consegue derrubar governos ou impedir acontecimentos. No humor político especificamente, pensam que tem algum poder sobre a realidade, que é capaz de impedir que certas coisas aconteçam, que o mal aconteça e o bem prevaleça. Acho que a eleição de Donald Trump indica que isso não é verdade. O candidato mais violentamente satirizado da história foi eleito. Isso significa que os humoristas não têm assim tanto poder político e ainda bem. Ficaria bastante preocupado se o sistema, se a democracia funcionasse de forma em que as pessoas iam às urnas, votavam e eu dizia que tinha uma piada muito boa e ia derrubar isso. Acho que aquilo que o humor faz, e já é muito, é fazer rir as pessoas. Como é que é isto de aplicar o humor à realidade, que por vezes não tem grande piada? A questão é essa. É justamente porque a realidade não tem piada que é necessário o humor. Eu duvido que no paraíso, se existir, alguém ria. A minha avó dizia-me sempre que só me ria do mal. Mas do que é que rimos mais a não ser do mal? Molière escreveu comédias sobre misantropos, hipocondríacos, gente com a mania das grandezas. Comédias sobre pessoas boazinhas não existem. Uma pessoa muito boazinha só tem graça se for tão boazinha que acaba por ser prejudicada. Aí já tem graça. As pessoas riem-se do que é mau, do que é triste, e do que é errado. E o facto de nos conseguirmos rir disso é importante, faz com que nos elevemos acima de nós próprios de um certo ponto de vista. Ser capaz de rir da sua própria desgraça, é vantajoso, reduz peso às coisas. Essa operação de subtração de peso parece-me muito importante. Em 2016, na altura do europeu de futebol um filósofo português chamado Cristiano Ronaldo, proferiu umas palavras célebres no fim do jogo entre Portugal e a Polónia em que íamos a penáltis. Ele falou com o João Moutinho e disse assim: “anda bater o penálti, se perdermos que se lixe” – ele até usou um verbo mais expressivo. Acho que esta atitude é melhor para ganhar do que a atitude do temos mesmo que ganhar. Claro que podemos argumentar que o Cristiano Ronaldo está em posição de dizer “se perdermos que se lixe”, mas mortais como nós não se podem dar a esse luxo. Mas acho que a questão é ao contrário. De facto, ganhamos mais, mais vezes e mais facilmente com a atitude do “que se lixe” do que com a atitude do “temos mesmo que ganhar”. O que a comédia faz é dotar as pessoas de uma espécie de atitude do “que se lixe”. Acho muito saudável. O programa que tenho feito a noite na TVI é sobre isso, é sobre a Assembleia da República, é sobre as comissões de inquérito e sobre o Governo, e acho muito saudável que uma sociedade possa rir-se dos seus dirigentes porque também lhes retira peso a eles e porque encurta a distância. Esta capacidade de rir e amenizar os problemas políticos não limita a acção no sentido das pessoas não se mexerem para mudar as coisas? Esse é um dos muitíssimos paradoxos da comédia. O que é que a sátira política faz? Critica. Ou seja, aponta o alvo e destrói-o ou homenageia-o. Isso é interessante. Quando faço pouco do primeiro ministro, estou a atingir o primeiro ministro ou estou a suavizar o mal que eventualmente ele faz às pessoas, a fazer com que elas digam que já estão mais aliviadas e já não vão para a rua tentar mudar isto? Toda a sátira implica um interesse pelo objecto satirizado. A minha questão é: será que o que nós, humoristas, fazemos tem poder? Eu não sou ingénuo ao ponto de dizer que não tem poder nenhum. Qualquer coisa dita publicamente tem a sua repercussão. A minha questão é? Qual a dimensão dessa repercussão? Acho que é muito menos do que o que as pessoas julgam e mais uma vez acho que isso foi provado no caso do Donald Trump. Já tinha sido provado antes. Houve ali uma altura entre a primeira e segunda eleição do George Bush Júnior em que o Jon Stewart era o principal comentador político dos EUA. Toda a gente dizia que ele era o grande crítico do Bush. O Bill O’Reilly, de direita, convidou-o para o seu programa na FOX e disse-lhe: “o que é triste é que vais ter uma influência nestas eleições” e estava danado com isso. Depois aconteceram as eleições e o Bush teve mais dois milhões de votos do que tinha tido para o primeiro mandato. É possível que as coisas tenham algum poder, duvido que seja muito grande e nós não o conseguimos controlar. A comédia é muito mais termómetro do que termóstato. Mede a temperatura em determinada altura, não a regula. Os países não democráticos não encaram bem a sátira política. Mesmo que não tenha força é temida. Acha que esse papel da comédia é diferente consoante o regime político? Quando digo isto as pessoas questionam o facto de nos regimes ditatoriais o humor ser das primeiras coisas a ser reprimidas. A minha resposta é: porque eles estão enganados. Eu não concordo com os ditadores. Acho que eles não têm grande coisa a temer sobre isso. Este é mais um dos paradoxos da comédia. Dizem que uma rainha poderosa de Inglaterra – Isabel I – tinha um bobo e que quando o chamava dizia para fazer piadas mais azedas sobre ela porque quanto mais azedo ele fosse à frente dela, mais ela podia dizer que tinha poder para permitir isso. Quando uma pessoa teme aquele tipo de manifestação significa que o seu poder não é assim tão grande. De facto, esses governos reprimem a comédia mas não conseguem fazê-lo. A comédia continua clandestinamente a funcionar. No regime soviético, por exemplo, havia várias piadas muito conhecidas e que iam mudando de país para país. Houve pessoas condenadas à morte por isso. Ainda hoje, os sinos tocam a rebate numa determinada localidade germânica no dia da morte de um padre que foi morto por ter contado a seguinte anedota: “um soldado alemão está moribundo na guerra e faz o último pedido. Queria que lhe dessem uma fotografia do Hitler e outra do Goebbels. Toda a gente ficou comovida com o patriotismo daquele homem que queria ser enterrado com uma fotografia daqueles dois. O soldado acabou por dizer que queria ir como Jesus Cristo, com um ladrão de cada lado. O padre contou esta piada e foi morto. Mas há mais. Há muitas pessoas condenadas à morte por dizerem piadas. As pessoas iam aos tribunais que as julgavam por causa destas anedotas, eram sentenciadas por um juiz e no fim da audiência, o juiz ia para as traseiras do tribunal, para um bar, e contava as piadas que tinha julgado às pessoas que lá estavam. Mas comédia não é agressão. Há uma tendência perigosa e cada vez maior para se achar que uma piada é uma agressão. O que faço não é bater. Posso explicar a diferença a quem tiver dúvidas. Eu primeiro bato e depois digo uma piada muito desagradável e, em princípio, a diferença fica imediatamente clara. Há várias perspectivas sobre a comédia. Há uma que durou muito tempo, dois milénios, entre Platão e Hobbes, que diz que nos rimos por causa da súbita consciência de que somos superiores àquilo de que estamos a rir. O Thomas Hobbes criou a expressão “glória súbita” em que achamos que somos superiores àquilo de que estamos a rir. É uma manifestação agressiva de superioridade. Depois começa a haver críticas a essa perspectiva. Há um tipo chamado Francis Hutcheson que tem uma perspectiva curiosa sobre o riso em que questiona este sentimento de superioridade. Se é esse sentimento de superioridade que nos dá vontade de rir, porque não vamos todos passar o domingo numa enfermaria a rir à gargalhada dos desgraçados que lá estão? Após estas críticas, o Kant e o Schopenhauer formularam uma outra teoria: rimos da incongruência, ou seja, aquilo que nos dá vontade de rir é o facto de termos uma expectativa desfeita. Somos o único animal que ri, dizem eles, porque somos o único que é impressionado pela diferença de como as coisas deviam ser e como são na verdade. E depois o Freud veio a seguir e disse: não é bem isso. O riso tem a mesma função no ser humano do que aquela válvula tem na panela de pressão, serve para aliviar. Olhamos para as três teorias e pensamos que se calhar cada uma delas descreve uma parte do processo, mas todas juntas não conseguem descrever a totalidade do processo. Aliás, Freud, mais tarde reformulou aquilo que pensava e disse que é de facto uma questão de superioridade, mas é mais complicada do que o que parece porque é uma superioridade minha sobre mim próprio. O que o humor faz é uma superioridade paternal do super-ego sobre o ego. Entretanto, o humor tem substituído a informação em muitos programas. Com vê esta situação? Sobre a substituição, vemos um programa do John Oliver e pensamos: mas porque é que os jornais não disseram isto? Normalmente, a resposta é: porque há mais dinheiro para o entretenimento do que para o jornalismo. Porque os programas de comédia têm um orçamento maior do que uma redacção de jornal. Há uma série de questões relativamente à comunicação social. Em Portugal isso e óbvio. Os grupos de media estão todos a despedir as pessoas que ganham mais e que são os jornalistas mais experientes, e as redações ficam nas mãos de pessoas que ganham 500 euros e que são mais fáceis de controlar por causa disso. E não há grande dinheiro para fazer coisas. Não é só o jornalismo clássico. O Facebook e o Instagram são a vitória ideológica das revistas cor-de-rosa, e a sua derrota comercial. Neste momento, duvido que haja paparazzi em Lisboa. Não é preciso andar atrás da Rita Pereira para saber onde ela anda e o que está a fazer. Ela põe as fotografias no seu Instagram, voluntariamente, e mostra como a vida privada dela esta a decorrer. Já disse em alturas anteriores que não põe limites aos outros. A si, impõe? Imponho-me um limite. Se não tiver nada para fazer rir as pessoas, não digo nada. Assim de repente, se há algum tema que nunca tenha abordado? Sim, há. É um tema sobre o qual não tenho nada de engraçado para dizer. Quando uma criança morre, eu calo-me.