EntrevistaFernando Lima, jornalista e ex-assessor de Cavaco Silva: “Edmund Ho foi uma espécie de parceiro” Andreia Sofia Silva - 22 Mai 201922 Mai 2019 Fernando Lima acompanhou de perto as negociações para a transição de Macau como poucos. Apresenta hoje a reedição do livro “Macau – Um Diálogo de Sucesso”, publicado há 20 anos. O autor recorda como a questão da nacionalidade dos chineses em Macau foi fundamental e como os negociadores portugueses não souberam antecipar o que a RAEM é hoje Fale-me deste livro que vai lançar em Macau. [dropcap]T[/dropcap]rata-se de uma reedição um livro que tinha publicado há 20 anos, em dois volumes, intitulado “Macau e as Duas Transições”. Vivi em Macau de 1974 a 1976, fui director dos Serviços de Informação e Turismo com o Governador Garcia Leandro. Quando trabalhei no gabinete do primeiro-ministro, em 1986, acompanhei a questão de Macau com a República Popular da China (RPC) e fui um observador da evolução das negociações. Isso permitiu-me, em 1999, publicar o livro sobre esse assunto. O que conta este livro de novo? Quis mostrar que os negociadores, sobretudo a parte portuguesa, estavam certos na abordagem que fizeram para tratar da questão de Macau ou preparar com os chineses a Declaração Conjunta. Muitas vezes vemos o início das negociações, mas não vemos os resultados, e hoje é possível vê-los. A parte portuguesa tinha como preocupação principal as pessoas de Macau, os que viviam em Macau e confiaram na Administração… A questão da nacionalidade, certo? Essa foi uma questão que os negociadores chineses compreenderam e era a nossa preocupação. Isso foi muito importante tendo em conta o que aconteceu depois em Hong Kong. O que também era importante para nós era a defesa da língua portuguesa, da cultura e do património. Hoje vemos que foi positivo e que a China está a tirar grande partido dessas três vertentes. Queríamos também que Portugal saísse com dignidade do território, por comparação com uma descolonização que não tinha corrido bem. Devo dizer ainda que, para os negociadores chineses, eram praticamente inegociáveis as questões ligadas ao exercício de soberania da China em Macau. E isso condicionava muito. Chegava a quase tudo. Chegava a quase tudo. Em Hong Kong os ingleses não tinham tido esse cuidado de protecção na questão da nacionalidade, e nós tivemos. Hoje, Macau é património da UNESCO, e, para ver a questão do exercício de soberania, quando Portugal quis fazer a candidatura de Macau à UNESCO, quando já estávamos no período de transição, a China disse que não, que tinha de ser ela a fazer isso. Houve demasiadas cedências de Portugal em relação à China? Sei que há analistas que pensam assim, mas não vejo as coisas dessa maneira. As negociações nem sempre foram fáceis porque a China estabeleceu um conjunto de regras e nós não tínhamos grande capacidade de negociação, pois não tínhamos interesses materiais fortes, como a Grã-Bretanha tinha em Hong Kong. Quando me diz que não havia interesses materiais, não acha que houve falta de visão relativamente ao potencial de Macau do ponto de vista económico, e que hoje é tão abordado? Muitas empresas saíram, ficou o BNU, por exemplo. Nessa altura, o grande poder económico e comercial pertencia aos chineses. Essa é a realidade. As nossas empresas que lá foram procuraram responder ao apelo do Governo de Macau e de Lisboa para que estivessem mais presentes em Macau, mas era um mercado difícil, porque era dominado pelos chineses. As nossas empresas eram de pequena dimensão. Obviamente que a China e os empresários de Macau queriam mostrar que, com o regresso de Macau à China, ia criar-se outro dinamismo. Também era uma forma de mostrar à população que ela estava a beneficiar com a transição. Porque havia essa necessidade? Quando se colocou a questão de a China reclamar Macau e Hong Kong, os chineses dos dois territórios não esconderam alguns receios, e houve até emigração para o Canadá ou Austrália. Uma das coisas que os chineses perceberam é que era preciso combater esse receio e tornar como um acto natural o regresso dos dois territórios, e que havia boas razões para acreditar na China. Foi assim que depois a China quis dar aquilo a que eu chamo uma utilidade geopolítica a Macau, ao criar o Fórum Macau. É interessante ver isso, porque até então a ideia que havia para Macau era a ideia de ser um território onde havia casinos. No início das negociações, a China tinha dificuldade em digerir algumas questões porque considerava ser uma concessão à nossa língua, cultura e património, e eles não estavam ainda em condições para fazer isso. Isto porque a China, quando começa uma negociação, parte sempre com desconfiança. Hoje as coisas são bastante diferentes. Nesse ponto, a China tem hoje uma posição completamente descomplexada em relação à língua portuguesa, à cultura e património, e viu que Macau podia ter essa utilidade geopolítica nesse espaço de influência portuguesa. Essa foi a grande evolução que depois a China acrescentou a Macau. No tempo da Administração portuguesa, o último Governador (Vasco Rocha Vieira) desenvolveu contactos com os novos países de língua oficial portuguesa e havia uma perspectiva de ir desenvolvendo relações. É sempre em Macau que os dirigentes chineses fazem declarações relativamente a esse espaço que querem cativar e onde estão hoje bem posicionados. A única coisa que os chineses não quiseram discutir nas negociações foi o passado. Em que sentido? O passado era o passado e não queriam voltar a falar de como os portugueses tinham chegado ao território. Para os chineses, Macau era um legado da história, e isso chegava, não queriam entrar em detalhes. Qual foi um outro ponto difícil nas negociações? Foi a questão da data. Houve várias versões sobre isso. Eu tenho a minha versão e está contada no livro. Devo dizer que a pessoa que levou a data a Pequim, e que já faleceu, era um dos meus melhores amigos, o secretário de Estado Azevedo Soares. E conversamos muito sobre a missão dele, que era a de propor aos chineses a data da transição. Os chineses impunham como condição que Macau tinha de ser reintegrada até 31 de Dezembro de 1999. A data que o secretário de Estado foi precisamente 31 de Dezembro de 1999. Aí os chineses, na sua maneira de ser, mostraram que essa data não era prática. Se fosse nessa data tinha de se prolongar por alguns dias o Grupo de Ligação, e eles queriam que tudo terminasse no dia 31 de Dezembro. Então propuseram 3 datas: o dia 15, 20 e 25. Propuseram então o dia 20 porque era uma data aceitável e Portugal aceitou, pois dia 25 era Natal. Chegaram a ser divulgados alguns documentos oficiais sobre o facto de ter sido falado o ano de 2004 para a data da transição. Os chineses quiseram outras datas, mas Portugal resistiu sempre. Para os chineses quanto mais cedo melhor, mas Portugal resistiu. Um dos pontos que Portugal frisava é que não podia ser concedido um período de transição inferior ao que tinha sido atribuído a Hong Kong. Depois estávamos a fazer tudo para as negociações correrem bem, o que não tinha acontecido nas negociações entre chineses e ingleses, não queríamos que a China fizesse uma diferenciação do processo. Há também uma parte que o meu livro conta é como o Álvaro Cunhal entra nas negociações. É uma parte pouco conhecida do processo. O PCP e o Partido Comunista Chinês tinham uma relação distante. A situação evoluiu e o Cunhal foi convidado para ir à China, mas não foi recebido pelo Deng Xiaoping. Os chineses incumbiram-no de uma missão em relação a Portugal. Isto porque, para os chineses, havia um problema, que era haver muitos chineses com passaporte português a quererem fazer a opção pela nacionalidade portuguesa. Sobretudo depois de terem fugido do país para Macau. Sim. Aí o Cunhal procurou trazer o pedido do lado chinês, que era criar algumas dificuldades para que isso acontecesse. Dizia que essa gente não tinha nada a ver com Portugal, e se viessem para aqui eram portugueses mas não ficavam integrados. Apontou algumas das dificuldades que, no entender do PCP, poderiam acontecer. Foi interessante ele ter aparecido nessa altura, mas depois resolveu-se tudo a contento e a China aceitou a nossa posição. A questão da nacionalidade ficou clara em 1987. Considera que tudo o que foi discutido no âmbito da Lei Básica está a ser cumprido, 20 anos depois? O livro não aborda esse período, mas penso que a Lei Básica tem sido consensual em relação ao que eram os objectivos da China em relação a Macau e ao modo de vida no território, que era importante ser salvaguardado. Na altura, adivinhava-se que o caminho de Macau seria a integração regional, e que se falaria disso muito antes de 2049? Quando cheguei a Macau, em 1974, fiquei fascinado por Hong Kong. E sempre questionei se Macau conseguia competir com Hong Kong, e quem haveria de dizer que isso seria conseguido. Macau deu um salto face ao que era, embora competir seja impossível, pois Hong Kong tem uma dinâmica muito própria face à China e ao mundo. Há 20 anos não éramos capazes de antecipar tudo o que está a acontecer. A China ia fazer de tudo para integrar Macau nos seus hábitos e nas suas leis, mas não éramos capazes de antecipar esta dimensão e que será maior face ao que já vi anunciar. Também não éramos capazes de antecipar o Fórum Macau, embora disséssemos que Macau tinha uma relação privilegiada com os países de língua portuguesa. O Fórum Macau tem sido alvo de críticas, 15 anos depois da sua criação. Se calhar alguns investimentos que a China fez não correspondem às suas expectativas, e pode estar numa posição mais defensiva em função daquilo que se está a passar em África. Em Moçambique existem problemas de corrupção, em Angola há uma mudança de poder. No que diz respeito à questão dos direitos, liberdades e garantias. O assunto dos direitos humanos foi muito debatido na altura? Foi uma questão que Portugal defendeu. A questão da pena de morte não se colocou em relação a Macau. Formaram-se políticos à pressa para governarem no pós-1999? A Administração portuguesa tentou integrar Edmund Ho no processo da transição e ele fez um acompanhamento num determinado período e isso foi muito importante. Edmund Ho foi uma espécie de parceiro. Em Hong Kong, com o primeiro Chefe do Executivo, aquilo correu muito mal, porque foi tido como um grande empresário, e faltou-lhe a chamada habilidade política. Em Macau, viveu-se a tranquilidade nos primeiros tempos. Nunca vi isto muito abordado nos livros sobre o território. Sobre a eleição do Chefe do Executivo da RAEM. Chegou a colocar-se a questão do sufrágio universal? Aí os chineses é que impunham as regras. Podíamos mostrar interesse, mas quando criámos o Estatuto Orgânico de Macau tivemos em conta as especificidades de Macau. Eles fizeram uma espécie de cópia desse documento (na elaboração da Declaração Conjunta), decalcaram de acordo com as características chinesas, para terem umas eleições que lhes trouxessem confiança. Isso não impede que haja grupos de cidadãos que possam defender o voto universal.