Arquitectura | I. M. Pei desapareceu aos 102 anos sem esquecer a pátria-mãe

I. M. Pei deixou a sua marca no mundo e depois voltou à China para fazer o círculo completo. Após um século de vida e de arquitectura, a sua impressão digital ficou no lugar dos seus afectos: o Museu de Suzhou

 

[dropcap]O[/dropcap] desaparecimento do arquitecto de referência mundial Ieoh Ming Pei, no passado dia 17 de Maio, aos 102 anos, não é só uma perda para a classe, mas para a humanidade, fazendo justiça ao conjunto de obras que ergueu e à importância do seu legado, de rupturas harmónicas entre o passado tradicional e a urbanidade moderna, desde os Estados Unidos da América ao Extremo Oriente, passando pela Europa e pelo Médio Oriente.

As obras mais emblemáticas são as bem conhecidas pirâmides de vidro (1989) e a reconstrução da nova ala (1993) do Museu do Louvre em Paris, o edifício leste da National Gallery of Art (1978) em Washington, D.C., as torres Gateway (1991) de Singapura ou, aqui muito perto, o Banco da China (1989) em Hong Kong. Este foi o arranha-céus mais alto do mundo, entre 1989 e 1992, e o desenho da sua estrutura, em diagonais, consegue fintar a força dos ventos e das monções.

A qualidade do trabalho de Pei é extensa e impressionante, laureada com diversas honras e prémios ao mais alto nível, tais como o ‘Pritzker’ de arquitectura em 1983.

Para o arquitecto Rui Leão, I. M. Pei “era um homem inteligentíssimo, que teve sempre um papel bastante interveniente nos projectos que desenvolveu e na relação com os lugares em volta.

Como já disse outras vezes, na arquitectura era um homem capaz de tocar todos os instrumentos, fazendo sempre coisas diferentes e muito bem feitas”. Algumas das suas preferências são a extensão do Louvre em Paris, a National Gallery de Washington, mas também os mais antigos The Luce Chapel em Taiwan, ou o Mesa Lab do Colorado.

A carreira profissional de Pei tem um valor especial nesta região do mundo, onde o arquitecto sino-americano viria a deixar a sua assinatura, a última das quais no Centro de Ciência de Macau, um projecto de arquitectura em co-autoria com o atelier dos seus filhos.

I. M. Pei, como era conhecido, nasceu na cidade de Cantão em Abril de 1917, numa família de Suzhou, na província de Jiangsu, a cidade conhecida como a “Veneza Oriental”, pelos seus canais, pontes e jardins. Chegou aos Estados Unidos da América em 1935, para estudar engenharia arquitectónica na Universidade de Pensilvânia, Filadélfia e, mais tarde, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Formou-se em 1939, mas não voltaria a regressar à China, com o eclodir da 2ª Grande Guerra.

Ao continente chinês retornou, como arquitecto de reputação mundial, com o projecto do Fragrant Hill Hotel (1982), em Pequim, inaugurando no mesmo ano o Sunning Plaza (1982), em Hong Kong, que viria a ser demolido em 2013 para dar lugar a novas construções em Causeway Bay. Depois do Banco da China, em Hong Kong, Pei desenvolveria também o projecto da sede do Banco da China (2001) em Pequim.

Suzhou e os canais

Mas é na província de Jiangsu, a uma centena de quilómetros de Xangai, que I. M. Pei viria a imprimir o seu cunho mais pessoal e afectivo, já no século XXI. “Eu gostava de falar do Museu de Suzhou. Não é o primeiro edifício que ele faz na China, mas para mim tem uma história que representa de facto o seu regresso à China”, comentou o arquitecto Rui Leão, “por ser uma obra muito particular, que tem a ver com o revisitar da arquitectura chinesa e é uma coisa extremamente bem feita”.

A história do Museu de Suzhou, inaugurado em 2006, começou assim. “A municipalidade de Suzhou convidou I. M. Pei para [re]desenhar o museu de arte antiga [fundado em 1960], já ele tinha conquistado o estatuto de “star architect”, e construído o projecto do Fragrant Hills Hotel de 1982, em Pequim. Mas Suzhou é um lugar muito importante na China, porque era uma cidade aristocrática, onde estavam os ‘literati’, pessoas que vinham da carreira militar ou da corte, que eram os intelectuais chineses. É a cidade que tem a maior concentração de jardins privados e os mais bonitos. E este projecto tinha a importância de ser um sítio de reunião de todas as vertentes da arte chinesa – a pintura, a porcelana, etc”.

Só que Pei, embora ligado à cidade pelo afecto, não avançou de imediato. “Ele visitou Sizhou e encontrou a cidade bastante desorganizada. Disse então ao presidente da câmara que aceitaria fazer o museu se, e quando, a cidade resolvesse a questão dos esgotos – a rede de esgoto estava muito mal tratada e misturava-se com os canais [com mais 2500 anos] –, aquilo estava imundo e cheio de lixo”, contou o arquitecto de Macau.

Assim veio a acontecer. Anos depois, ao regressar a Suzhou, encontrou já uma cidade limpa e o esgoto arranjado. Pei concebeu o complexo museológico, “que é um projecto lindíssimo, porque revisita a arquitectura chinesa, mas com um sentido de grande liberdade a nível da escala dos espaços, da geometria e da tecnologia, ou seja, não é uma cópia, não é uma simulação de nada.

Tudo aquilo tem a ver com a percepção de como se pensam os espaços, como é que se traz a luz para dentro, como é que há espaços dentro de espaços, etc. São reflexões que ele fez sobre a arquitectura chinesa”, trazendo o seu ‘know how’ e criatividade para aquela obra especial.

O homem que procurou redefinir a arquitectura de uma China moderna, e várias vezes o conseguiu, em Suzhou viria a fazer o trajecto inverso, erguendo uma obra moderna e geométrica, com pontos de aproximação ao tradicional centro histórico, com estruturas das dinastias Ming e Qing. Integrar as linhas arquitectónicas foi o grande teste, sem comprometer o património classificado.

Para Rui Leão, também relevante “é ele não ter só desenhado o edifício, mas o facto de ele e a mulher terem sido os curadores da própria exposição e das peças do museu. Isso, na altura, foi muito importante: haver curadores que fossem independentes, de maneira que não houvesse uma percepção de que o conteúdo do museu pudesse estar relacionado com uma certa propaganda de Estado. Ele conseguiu dar à cidade de Suzhou, de uma forma extremamente integrada, inteligente e sábia, uma grande instituição, naquela cidade histórica feita de pequenas casinhas e de belíssimos jardins”.

O website site do Museu de Suzhou colocou, também por estes dias, uma imagem de tributo a I. M. Pei, com uma frase em que confessa: “Eu tenho carinho por este museu, porque lhe dediquei muito do meu amor e da minha energia”.

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