h | Artes, Letras e IdeiasO que diz Tavares José Navarro de Andrade - 3 Mai 2019 [dropcap]D[/dropcap]iz Tavares: “Os leitores estão cansados, as pessoas trabalham muito, têm vidas duras e há uma literatura para cansados, para pessoas que vêm do trabalho e que querem ler um livro como quem quer ter uma massagem ao final do dia. Mas a função da arte e da literatura não é descansar. É acordar, perturbar, reflectir. Não deveríamos ver arte ou ler livros quando estamos cansados. A literatura e a arte exigem muito de nós.” De tão iterado e brandido o mantra da arte – e concomitantemente do artista – como ventoinha ou despertador das consciências, ele já ascendeu a esse grau superior do consenso e nível zero da inteligência que é o lugar-comum. Contudo, a putativa evidência e a pressuposta unanimidade de tal função não resiste ao escrutínio de uma mesmo que módica racionalidade. Ia a dizer Tavares: “Mas a função da arte e da literatura não é […]” – alto aí… O quer que ele diga a seguir virá na sequência de um passo em falso que é o de jungir a arte a um “deve ser.” Logo ela tão predisposta a nunca ficar onde a querem pôr e a transbordar as margens em que a tentem conter. Delibera Tavares: arte “é acordar, perturbar, reflectir”. Priva-se, então, da qualidade de arte aquela que demande o sublime? Não pode a arte avocar-se como pesquisa, experiência ou experimentação formal? E porque se estreita a categoria de arte – que é como quem diz: acomoda-se – à finalidade de inquietar, desafiar, desacatar, criar desconforto, ou até invectivar, afrontar e amotinar? Destitui-se de ser arte a obra que se concebe e oferece como consolação? Precisamente a missão de consolar os “cansados” que tanto precisam do refrigério que só a arte entrega. À rédea curta a que Tavares vincula a arte é indispensável o contributo do chicote com que ele, o soberbo e esclarecido artista, se atribui a missão de flagelar os “cansados”. “Mutatis mutantis” esta atitude reproduz um método antigo aplicado com grande êxito pela Inquisição: se macerares a carne, desprendida dos pecados do corpo a alma se libertar-se-á e só assim estará afim de contemplar a maravilhosa verdade. Reitera Tavares: “Está a fazer-se cinema e literatura para cansados, no sentido em que é entretenimento, que serve para acalmar. […] Se for um livro forte ninguém cansado o consegue ler.” Definitivamente Tavares não escreve para os leitores que há. Apieda-se deles, os “cansados,” e não os culpa, coitados, do cansaço que sofrem nem das escolhas a que este os sujeita – o desmiolado “entretenimento.” Mas, tenham lá paciência, enjeita-os sem dó – acha-os incapazes de ler um “livro forte”. Tavares presume, portanto, escrever para um leitor que esteja ao seu nível embora constate a sua inexistência. Deste postulado logicamente deriva que Tavares adjudica a si a prerrogativa de julgar quem se elevará a esse seu nível de exigência. Esta fraude é usual chamar-lhe “criação de novos públicos.” Não é difícil perceber que só considera terapêutico arremessar um “murro no estômago” – execrável clichê – de outrem, quem não seja espancado pela vida das 9 às 5 ou em horário alargado. Quem se põe para além das cólicas e constipações do homem comum – o “cansado.” Ora isto traz a lume a questão da legitimidade que Tavares arroga. Que deus, pacto social ou constituição agraciou Tavares como “conducator” dos leitores? Quem o nomeou sherpa do escrúpulo e da lucidez? Que foro lhe outorgou a distinção de vate dos porvires? Quem o designou com a santificada vestal da grei? Pois nada nem ninguém. O que Tavares sobretudo demonstra é a contumaz falta de generosidade que em demasiados casos é característica do artista contemporâneo, em particular o que opera nas artes narrativas. Esta pungente supressão de empatia com o leitor que se lhe apresenta decorre do movimento tectónico que tem vindo a reposicionar a manifestação da arte não como um processo e uma dinâmica de partilha, mas como um exercício narcisista e misantrópico de expressão pessoal e egocêntrica. O problema não são os leitores “cansados,” o problema são os Tavares de quem afinal os leitores estão deveras cansados de ouvir.