Homo Roussus Televisionis

[dropcap]C[/dropcap]omo se chamava ele? Todos o tratavam por Jonas, mas não sei se era o seu verdadeiro nome. Não é importante. Aconteceu tudo demasiado rápido, não deve ter chegado a um ano. Jonas, viemos a saber depois, tinha 27 anos, ainda estava ali para todas as curvas da vida. Mas o que se pode fazer, acontecimentos sem explicação existem por todo o lado. O dele foi o mais surpreendente, não me lembro de ouvir ou de ler alguma coisa assim, nem num livro de ficção científica. É tão rebuscado que ninguém se iria lembrar disto. Há histórias de lobisomens e indivíduos comuns que são picados por um bicho qualquer e se transformam num ser abominável, com poderes extraordinários e mais tarde em super-heróis, se a tramóia for para vender bilhetes. Há também a história de Kafka, em que um homem acorda certa manhã metamorfoseado na figura de um monstruoso insecto, depois de uma noite agitada de pesadelos. O desgraçado do Gregor Samsa. Se calhar, o nosso amigo também se chamava Gregor, dada a firmeza com que a vida foi regurgitada por todos os poros da sua existência.

Com ele foi diferente, apesar da trajectória ter sido veloz, a acoplagem não aconteceu de repente e os sintomas não se notaram de imediato. Talvez tenha sido um tique, um movimento mais brusco do braço, em que a mão se põe a coçar a cabeça de modo irreflectido, talvez à procura de um pensamento com a ponta dos dedos, por entre a floresta do couro cabeludo. De dia para dia, eram mais nítidos esses gestos, só depois vieram as transformações físicas. Mas também aqui podia ser uma perturbação qualquer, nada fazia supor aquele desenlace. As orelhas a ficarem mais planas, o nariz mais achatado, os olhos maiores, como o lobo da avozinha. Mas foi o andar que deu o alerta, perna mais aberta, a coluna laça que o tornava mais atarracado. Teria levado uma martelada na cabeça? As palavras a irem-se, como se tivesse sob o efeito do jogo da Roleta Ruça, que na altura estava na moda. Que se passa Jonas? E ele não dizia, faltava-lhe o vocabulário, não conseguia argumentar e ia-se embora, fascinado pela natureza lá fora. Não era Alzheimer nem um AVC, isso tínhamos a certeza, mas não se sabia o que era, seria contagioso?

Nunca tinha ouvido falar na Roleta Ruça, não acreditei que fosse possível. Pus-me a pensar se seria perigoso, pelo menos não tanto como a outra em que se enfia uma bala no tambor de um revólver e se roda o cilindro. E é azar se o projéctil sai à velocidade do som e nos estoira os miolos, porque há mais probabilidades de o disparo sair em seco. Aqui não, aqui ninguém morre, mas o resultado é de igual requinte. O feitiço é sempre o mesmo, joga-se pelo fascinante desafio. Aposta-se a fala. A cada nível, mantemos ou perdemos vocábulos, até ao extremo de ficarmos sem o conhecimento de todas as palavras. É um jogo, o mais certo é sairmos derrotados, e quanto mais fundo caímos mais sentimos o direito de recuperar esse bem precioso que é o acto de falar. Verbo após verbo, tudo cai na corda do esquecimento. O tambor tange o som do oblívio. Poder-se-á dizer que é uma experiência científica? Talvez seja apenas isso. No início, ligamos o cérebro a um capacete cheio de propulsores eléctricos, cada um com a sua função estimulando zonas distintas da nossa mente. Como um motor de busca, o aparelho pesquisa as palavras armazenadas em cada uma das gavetas da memória e retira-as, eliminando o seu registo. Perdemos a noção do termo, do seu significado e da sua existência. De palavra em palavra vamos ficando vazios, sem nada para dizer. Não conseguimos articular uma fala, a partir deste ponto tudo se apaga, é o fim da vida em sociedade. E não é um sonho agitado, o resultado é idêntico ao de premir o gatilho com a bala a entrar por uma têmpora e a sair pela outra, deixando um rasto de destruição. O rastilho de um homem perdido.

Mas o sistema não é infalível e ao fim de alguns dias a memória é assaltada pela configuração anterior e em pouco tempo a nossa linguagem é restabelecida. E quando damos por isso desatamos às gargalhadas como quando aspiramos um balão de hélio e falamos. É incompreensível. Mas com o Jonas não foi possível mudar os fusíveis, o seu mal foi progressivo e sem retorno.

A sua família assustou-se e tentou encontrar especialistas, do ramo da neurologia ao esoterismo. Fizeram-lhe exames, passou por todas as ressonâncias e aparelhos de rádio. Deitou-se com todo o tipo de marquesas. Consultaram osteopatas, médiuns que captam a energia das estrelas de olhos fechados e as canalizam para o corpo do paciente. Foram à maior sumidade de acupunctura da cidade, guinchou quando lhe espetaram agulhas na nuca. Um homem no Alentejo pôs-lhe as mãos em cima para lhe sentir os males, não encontrou nada. Afagou-o no final e deu-lhe uns pozinhos para tomar em casa. Por fim, uma análise ao DNA revelou drásticas mutações genéticas. Jonas estava a transformar-se num homem das cavernas. Os genes participavam numa orgia. Ninguém acreditou, claro.

Chegado à fase de Neandertal, começou a acalmar e a sentar-se com os pés em cima do sofá para ver os programas da manhã na TV. Babava-se. Olhos arregalados, as narinas cada vez mais largas, onde podia inserir o controlo remoto para retirar algum monco.

No entanto, a comunidade científica começou a interessar-se pelo caso e não o deixou expirar. Estudiosos de todos os quadrantes ventilavam teorias absurdas, uma após outra. Comentadores de fim-de-semana dissertavam as suas sentenças sobre os braços mais compridos desta criatura, agora quase a arrastar no chão, numa desorientação curvilínea. Os pelos que lhe cobriam o corpo, a pele mais escura. Teria sido alguma coisa que comeu? A oposição usou-o como arma de arremesso para criticar o governo, que simbolizava o estado do país. Não foi preciso rodar o revólver. O assunto estava na ordem do dia e os esclarecimentos plausíveis eram nulos. Ainda se pensava que podia contagiar e aparecer novos casos. Para despistar características hereditárias foi feito um rastreio à sua família, mas Jonas permaneceu em casa.

Chegado à fase de Neandertal, começou a acalmar e a sentar-se com os pés em cima do sofá para ver os programas da manhã na TV. Babava-se. Olhos arregalados, as narinas cada vez mais largas, onde podia inserir o controlo remoto para retirar algum monco. Isto chegou aos ouvidos de uma das estrelas que liderava as audiências, a Cristina Pinheiro, por quem Jonas suspirava o maior pasmo, que o quis levar ao seu programa. Tinha uma equipa de médicos e cientistas que iam explicar o caso em directo, nesta altura já mundialmente conhecido. O país parou para assistir a este triste espectáculo. Contra a sugestão da equipa de produção, a anfitriã deixou o seu interlocutor à solta, porque não era natural, mas sobretudo porque queria reverter o andamento da enfermidade, encenando uma voz doce e segurando a mão de Jonas. “Me, Jane. You, Tarzan!”

Num grande plano, enquanto a apresentadora tentava ordenhar uma lágrima, pudemos observar a transmutação para australopiteco e depois para mais longe ainda, num retrocesso de milhões de anos. Já ninguém sabia definir exactamente o termo certo para a espécie, aquele nível era demasiado alto. Os cientistas boquiabertos, sem conseguirem articular uma palavra. Os homo camera com os tambores a ruçarem-lhes as têmporas. A bala a perder-se no motor de busca. No oblívio. Miolos espalhados nas lentes.

Mas o que aconteceu é que perante a figura maior da sua devoção, o nosso ânthropos não se conteve e devorou a dondoca que tinha à sua frente. Não me perguntem como a devorou, porque não vou dizer. De seguida, como quem abandona uma conversa que não lhe agrada, escapuliu-se por entre os seguranças e desapareceu. Saiu a guinchar e já em completa postura primata. Supostamente, deverá ter zarpado para a selva. Patrulhas policiais seguiram-no a todo o gás, com helicópteros e um dispositivo militar numeroso em seu alcance. Iam à procura de um chimpanzé, mas a velocidade do projéctil era tal que o mais certo foi ter-se transformado de imediato num girino, ou num fóssil de dinossauro. Quem sabe, na costela de algum Adão.

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