O pudor da dor

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]credito que os grandes inícios da literatura, aqueles que se tornam tão verdade de arranhados pelo uso, merecem ser lembrados. Estão lá devido ao génio de quem os escreveu, prontos para nos socorrerem sempre que deles precisamos. Como é o meu caso agora, que invoco essas primeiras linhas extraordinárias de História Em Duas Cidades (A Tale of Two Cities) de Charles Dickens. Conhecem, certamente: « Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da sabedoria, foi a idade da insensatez, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação da escuridão, foi a Primavera da esperança, foi o Inverno do desespero». Dickens falava dos dias que antecederam e sucederam à Revolução Francesa; mas as palavras são tão atemporais que se podem colar aos dias de hoje e a outros que não conhecemos. Traduzem a velocidade e as contradições de alturas em que o mundo nos parece escapar, tão vertiginosa se apresenta a mudança. E é por essa razão que hoje aqui surgem: para justificar uma crónica baseada na perplexidade que as mudanças velozes podem criar.

Reparem: não se trata de julgamentos ou sequer opinião – embora ambos estejam sempre presentes, em maior ou menor grau. O cronista, mesmo quando questiona e se surpreende, tenta sempre ter razão ou pelo menos conseguir partilhar essa razão. Mas perante o assunto que aqui me traz não posso nem devo impor seja o que for – apenas tentar transmitir o que sinto. Porque é algo tão íntimo que não pode ambicionar a ser nada mais do que uma reflexão, um desabafo. Falo da dor e do que me parece ser a sua banalização.

É algo que os tempos trouxeram e que é familiar a todos; algo que muitos praticam e eu próprio não fui excepção (embora, para ser sincero, me tenha arrependido): a partilha do luto ou da iminência da perda, a exposição daquilo que é mais íntimo, mais primevo até. O anúncio da morte, do luto ou do sofrimento nas redes sociais – e mais propriamente naquela que utilizo, o Facebook –  tornou-se banal, quase quotidiano. Falamos da mais terrível dor para uma multidão que não conhecemos – coisa que provavelmente não faríamos há alguns anos – porque vivemos numa ilusão de proximidade. O algoritmo parece transformar toda a gente em amigos e confidentes. E não é verdade.

Mas a pergunta que mais traduz a minha perplexidade é: porquê ? Porque fazemos isso? O que esperamos quando o fazemos? A comunicação de uma perda é feita há muito e ainda sobrevive nos poucos jornais em papel. Mas só pede uma resposta daqueles que realmente nos conhecem e estimam e que irão estar presentes na despedida. Não é assim no Facebook: escrevem-se elegias, antecipa-se mesmo o luto. Mas o que se recebe é pouco. As reacções são simples, anónimas, até gráficas. Ninguém que não nos conheça está a chorar, asseguro-vos: poderão ter empatia, conhecer por experiência aquilo que lê. Mas o que ali recebemos pela partida de um ente querido – likes, emojis, “forte abraço” – fica assim no mesmo plano afectivo daquilo que recebemos quando nos morre um animal de estimação. E não, não: um bicho, por mais que o adoremos e consideremos “da família”, nunca poderá equivaler a um pai, um filho, um ser humano.

Não duvido por um segundo da autenticidade da dor de quem assim a anuncia. Não é disso que falo. Está-se a perder, parece-me, um pudor que considero essencial para ser humano. A intimidade da dor e da sua partilha banaliza-a; e como a vida é também sofrimento, por extensão banaliza a própria vida. Repito: não existe uma forma ideal de exprimir algo tão do nosso âmago, e muito menos uma classificação de correcto ou incorrecto. Isso seria a mais totalitária das regras. Mas fico perplexo, fico perplexo.

O cristianismo primitivo tinha uma forma específica de oração que pedia a Deus o dom das lágrimas, porque chorar é aceitarmo-nos como imperfeição que sempre seremos. Não será preciso pertencer a uma confissão religiosa para perceber a beleza e pertinência desta atitude. Se perdermos as lágrimas, perdemos tudo – e estamos em risco de o perder. Salvemos pelo menos a perplexidade e o pudor da dor nestes tempos vorazes, Primavera de esperança, Inverno do desespero.

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