Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasII O espanto António de Castro Caeiro - 19 Fev 2019 [dropcap]U[/dropcap]m dos problemas postos no interior da actividade filosófica, da acção do filosofar, é o da motivação, o da fundamentação complexa que desencadeia o filosofar. Tanto mais assim que toda a filosofia procura a transparência relativamente ao seu próprio acontecimento. A obtenção de transparência relativamente a si próprio enquanto filósofo procura sempre obter inteligibilidade sobre esta possibilidade humana. A hipótese com que sempre nos teremos que ver a respeito da filosofia é a de que lhe corresponde um modo inteira e radicalmente diferente de vivermos a nossa vida com os outros no mundo. Isto é, o modo como habitualmente nos encontramos depostos nas coisas, a maneira como nos relacionamos com os outros, a forma como damos conta de nós próprios, pode ser diferente. Para que esta hipótese não seja académica e afastada da nossa realidade, tem de se perseguir vestígios da possibilidade de haver um mundo diferente daquele em que vivemos, de o mundo poder apresentar-se, se não, como é em si, pelo menos numa apresentação diferente daquela de que ele se reveste, que nós próprios podemos ser diferentes, outros, irreconhecíveis para nós tal como somos, que os outros também nos podem aparecer sob uma outra luz completamente diferente. Uma coisa é certa. É extraordinariamente difícil abrir mão do preconceito fundamental que nos faz aderir à compreensão que temos das coisas, na verdade, que a nossa compreensão nos permite interpretar as coisas tais como elas são em si, impermeáveis a qualquer tonalidade privada e subjectiva. O primeiro passo é o da auscultação da diferença. Como perceber que a interpretação do mundo de coisas e dos mundos que são os outros bem como do nosso próprio mundo enquanto a vida que é é a que temos é precisamente a nossa interpretação. De uma forma mais precisa: a minha interpretação. Sou eu o agente e o protagonista da vida. És tu o agente e protagonista da tua vida. É ela e ele o protagonista da vida dela e da vida dele. Somos nós, sois vós, os protagonistas das nossas, vossas vidas e eles das vidas deles. Os gregos encontraram no espanto a possibilidade concreta de encarar a sério a possibilidade de as coisas não serem como nos aparecem ou como nos parecem ser. A palavra thayma descreve um objecto espantoso, uma experiência espantosa, uma afectação que provoca um estado mental de espanto. A palavra exprime um sentido que excede o conteúdo do objecto enquanto tal. O que é espantoso no objecto não é, a bem dizer, nada. É o modo como se dá a ver, como se apresenta, como nos afecta que é espantoso, agente provocador de espanto, o próprio resultado de espanto. A par da palavra espanto, pasmo, encontramos as palavras admirável. admiração, admirador, maravilhoso, maravilha, emaravilhamento, maravilhado. A experiência do espanto, do espantar-se com algo ou alguém e até o ficar espantado consigo é complexa. Há dois vectores afectivos que podemos determinar. Por um lado, produz-se uma atração na direcção do que provoca espanto. Queremos olhar para o espantoso, o que está presente no étimo de admirar: mirar, olhar para. Por outro lado e pelo contrário, espanta, põe em fuga, desperta aversão ou um respeito que não nos deixar encarar olhos nos olhos nem arostar com o que é espantoso. Fazemos uma experiência de perplexidade. Por um lado de emaravilhamento e por outro de espanto em sentido estrito. Um pode ser preponderante em relação ao outro, pode haver sensações sucessivas dos dois sentimentos, pode dar a sensação que maravilha e espanto estão a acontecer ao mesmo tempo. Todas as coisas maravilhosas do mundo vinculam-nos num olhar para as ver e estar a ver. Todas as coisas espantosas do mundo podem ser medonhas e terríveis. Metem medo, receio, terror e horror. Podemos perceber que a experiência implica objectos que são assim caracterizados: a beleza de uma pessoa, a linha do horizonte, o Atlântico, o pôr do sol, o cume de uma montanha, o jogo da luz a criar as luminosidades do dia, as estações do ano, etc., etc.. Há também coisas que metem medo: o olhar frio do assassino, o poder demolidor de um exército, de catástrofes naturais, tsunamis, incêndios, desastres. Há coisas que são dignas de admiração tal como pessoas. Há coisas e pessoas que espalham o terror. Em qualquer dos casos e qualquer que seja a combinação entre as disposições que são despertas em nós, fazemos a experiência de perplexidade, somos acordados violentamente do sono quotidiano, do modo como nos encontramos habitual e normalmente. É o que acontece no fenómeno da paixão, da “filia”, da obsessão compulsiva com um determinado objecto, na relação perplexa com um conteúdo erótico no sentido mais lato do termo, com aquilo que mexe connosco, de que gostamos muito, que constitui a nossa identidade. Na paixão, sentimos uma invasão total, avassaladora, com a presença de alguém, que muda simplesmente a nossa vida. Mas não se trata apenas da alteração do estado da consciência provocado pelo amor erótico ou pela amizade profunda e amor que sentimos por pessoas. A alteração provocada pelo estado de paixão pode ter como objecto a ciência, a arte, a religião, tudo aquilo a que nos dedicamos, as nossas devoções, o que nós somos e o que nós fazemos. Tudo pode resultar de uma espécie de entusiasmo, uma invasão do divino em nós, que permite escutar o que as musas têm para dizer e que o dizem como se estivessem a ditar o que temos para escrever. É como se sentíssemos a inspiração que “sopra” uma brisa ou um vento que cria uma dimensão diferente daquela em que habitualmente nos encontramos. O que sucede nestas variações disposicionais complexas é a criação de mundos paralelos que estavam adormecidos que eram como se não existissem e passam a ser despertos, mantidos acordados. E nós transformamo-nos para podermos habitar esses mundos e existir nessas outras formas de vida. Há uma metamorfose do objecto e uma metamorfose dos próprios. O músico é diferente quando vai de pagar impostos e quando está tomado de um transe inspirador que o transporta para a dimensão intrínseca do horizonte musical. O mesmo se passa com o actor, com o pintor, o escultor, o escritor, o poeta, o sacerdote e o professor. Temos estado a referir experiências radicais, recalcitrantes, que testemunham a diferença entre a vida de todos os dias de que não despegamos ou que não nos demite e uma outra possibilidade de vida mais intensa, radical, que depende da existência de inspiração, entusiasmo, espanto, admiração, respeito, interesse. O espanto filosófico é, contudo, diferente. Ou antes assume um rosto diferente também. Não é apenas o episódico e o extraordinário que permite compreender a diferença entre o mundo criado pelo entusiasmo e o mundo sem entusiasmo. O destino da filosofia está em compreender que os maiores problemas se encontram depositados nas coisas mais banais e aparentemente triviais. O espanto não é com o diferente é com o igual. Como é que a mesma coisa, a mesma pessoa, nós próprios, tudo é o mesmo objectiva e realmente e, contudo, completamente diferente, tudo pode ser completamente diferente. Podemos apaixonar-nos por uma pessoa que nunca vimos, como por actividades de que não tínhamos nunca feito a experiência. Mas podemos também ver uma pessoas 2000 mil vezes e apaixonar-nos por essa pessoa à bilionésima primeira vez. Podemos dar conta da maravilha daquilo a que nos dedicamos e do que propriamente fazemos, décadas depois de o termos iniciado, já estafados e sem o entusiasmo sequer de principiante. Aristóteles dizia que era espantosa a incomensurabilidade do triângulo, as fases da lua, os eclipses do sol e da lua. Mas mais espantoso é isso ser espantoso, porque é assim que esses fenómenos extraordinários são. Mas tudo é extraordinário. Estar vivo e ser é espantoso porque há ser e não nada, estamos vivos e não se dá o caso de estarmos mortos. Espantoso são todos os objectos, todas as coisas, todas as pessoas por que sob plano de fundo existe o horizonte relativamente ao qual tudo é forma, no qual tudo está distribuído numa coexistência de sequências temporais que entroncam num mesmo e único tempo que se está a fazer ao mesmo tempo que ele próprio passa e com ele todos os conteúdos que são no seu todo.