Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasUm itinerário António de Castro Caeiro - 12 Fev 2019 [dropcap]O[/dropcap] João Paulo Cotrim com o anfitrião José Teófilo Duarte e eu, decidimos animar com filosofia o magnífico espaço da Casa da Cultura de Setúbal, às segundas sextas-feiras de cada mês. O João Paulo Cotrim, com o seu jeito, inato e trabalhado, para títulos, é o autor deste. Agora, temos como anfitrião o Carlos Morais José, que nos abriu a porta do Hoje Macau. Não se fará a transcrição do que tem acontecido e irá acontecer, até mesmo porque não temos gravado todas as sessões. O que lá se tem passado resulta de uma preparação dos temas em conjunto com o João Paulo Cotrim que não é mero entrevistador, por mais elevada que seja a prestação do entrevistador. O João Paulo Cotrim é um actor protagonista que comenta, resume, lança e relança os pontos que temos previstos no alinhamento e itinerário para cada tema. É disso que em certo sentido se trata: oferecer aos leitores do Hoje Macau aquilo a que os alemães chamam protocolo das aulas. As aulas dos seminários começam com um resumo da aula anterior. A partir daí retoma-se a própria aula. Dividirei tanto quanto possível o assunto de cada mês em quatro partes. Cada uma delas corresponderá a uma parte do protocolo da sessão inteira. Esta primeira procura esclarecer o sentido do título a pés juntos ligado explicitamente à filosofia. “A pés juntos” explica adverbialmente o modo de saltar, entrar, jurar. Mas também podemos atirar-nos de pés juntos, num movimento ofensivo, para cair em cima de um adversário. Ou, apoiar pés juntos, para esticar as pernas e nos afastarmos do fundo do mar, para vir à superfície. A expressão dá ênfase ao sentido do verbo. O que será então a filosofia a pés juntos? É um modo como podemos abordar a filosofia. Fincar pé e, enfaticamente, procurar saltar para ela, entrar nela, num movimento que vai na sua direcção. Pode significar, também, se a tomarmos como sujeito, que é a forma como ela acontece, ao assaltar-nos ou ao entrar dentro de nós. As sessões a decorrer na Casa da Cultura de Setúbal terão este mote. Soltaremos filosofia para que nos ajude a saltar para o âmago de temas que nos assolam. Despiremos a sua roupagem técnica. Deixaremos que cerque, abalroe e invada tudo quanto nos preocupa. É assim também que lidaremos com ela. Como se fosse um animal que nos serve de defesa e, por isso, não pode estar completamente domesticado. Terá de encontrar vestígios, farejar pistas que tentaremos perseguir. A sua presa será sempre emboscada. O sentido que se persegue a pé juntos com a filosofia terá de dar caça a cada tema das nossas conversas. Educação? A educação é uma das presas a que daremos caça. Agostinho da Silva dizia que se devia banir o termo e, consequentemente, o sentido que lhe dá compreensão. Dizia ele que educação vinha do latim ex-duco que quer dizer conduzir de dentro para fora. Portanto, educar pode querer dizer levar para fora do caminho interior de cada um. Podemos pensar na diferença anulada por uma versão do ensino que procura uni-dimensionar cada pessoa, homogeneizá-la, planifica-la. A sua proposta para o ensino era expressa na palavra instrução. In-struo em latim quer dizer construir a partir do interior. Portanto, a aprendizagem é uma compreensão da essência de cada pessoa, o seu modo de ser, como é suposto existir com as suas possibilidades mais radicais. A possibilidade mais radical de um ser humano será a técnica ou a poética e a prática. Agir é importante. Produzir é importante. Criar é importante. Não saber o que quer que seja assim sem mais para ter sabido, mas para intervir, sobretudo, sobre o próprio. Fronteiras As perguntas mais básicas da filosofia interrogam sobre a situação em que cada um de nós se encontra. A mais básica é onde estamos ou onde somos? Em que tempo vivemos? Quando passamos por aquilo pelo qual passamos? Com quem fazemos vida? O que fazemos aos outros, sob a nossa acção e o que os outros nos fazem deixando-nos vulneráveis às suas acções? Todas as perguntas desenvolvem a questão fundamental pela situação existencial. A situação terá de começar por uma explicitação espacial, regional, local, fronteiriça. Erigimos barreiras entre os problemas que temos em lidar com determinadas pessoas e assuntos que jazem fundo nas nossas vidas. Mas também destruímos muros. Abrimo-nos aos outros tal como nos abrimos para nós, quase sempre por causa dos outros. Também traçamos fronteiras físicas, geográficas naturais e artificiais, linguísticas. Há entre quem cada um de nós é no seu interior e o meio que o envolve fronteiras. Há o interior e o exterior. Há espaços privados com o direito reservado de admissão. Há espaços interditos, privados. Há espaços públicos. O próprio corpo no seu interior tem a pele como fronteira para o mundo exterior. E entre o interior da nossa alma e o exterior que é o nosso corpo não haverá também barreiras que se erigiram e podem ser intransponíveis se não fizermos adequadamente a pergunta como somos alma e corpo, ou mente e físico? Justiça Dos problemas sempre decorrentes, a definir como a filosofia entra a pés juntos no que procura compreender, por ser opaco e nós querermos obter transparência, é o da justiça. Sócrates dizia que é melhor sofrer a injustiça do que a cometer. Dizia ainda que, uma vez tendo nós cometido a injustiça é melhor pagá-la do que ficar impune. Aparentemente, Sócrates defendo o mundo às avessas. Não queremos nós “fazê-las”, primeiro, antes que no-las façam a nós? E tendo nós sido injustos não estaremos continuamente a invocar pretextos e desculpas que tendem à atenuar o que fizemos de mal aos outros, com o fim da nossa absolvição? Ser justo ou ser injusto, sofrer a injustiça ou obter justiça implica uma relação intrínseca, não anulável, ao outro. É por sermos uns com os outros, antes de tudo o mais, que, mesmo sem o sabermos e, apenas pelo facto de existirmos, podemos fazer os outros sofrer. Ou porque sem querer os ignoramos e não lhes ligamos nenhuma. Ou porque dizemos da boca para fora uma palavra ao próximo. Impensada uma palavra pode ferir. Ou porque uns se deixam aos outros para ficarem cada um deles com outros ou sozinhos. Seremos nós vítimas de todas as injustiças ou os algozes das injustiças que infligimos aos outros? Identidade Talvez devêssemos falar de identidades. Reconhecemos uma coisa, quando dizemos a sua identidade específica. A identidade de uma coisa dá-se na identificação dessa coisa no que ela é, por onde é que ela vem a ser o que é. Um rectângulo de madeira, pintada de azul com 2.10 m de altura e 70 cm de largura, perpendicular ao chão, não permite reconhecer a porta de uma sala. Nem tudo o que é rectangular é porta e há portas que não são rectangulares: ser de forma rectangular, ser de madeira, ser azul, ter determinadas medidas são os conteúdos específicos da porta, mas o ser da porta não “existe” nesses conteúdos. A identidade da porta é o que faz a porta ser porta. É abrir e fechar para deixar entrar e sair, é libertar e prender, é deixar preso num interior ou permitir sair para o exterior. Os infinitivos nucleares: abrir e fechar, deixar entrar e sair, são o ser da porta. Não são conteúdos presos aos componentes da porta. A identidade da porta é reconhecida, quando, ao olhar para os seus componentes materiais, a porta se dá reconhecer pela sua compreensão. Compreender uma porta é saber poder intervir nela, accionando efectivamente a possibilidade que oferece. Como identificar uma pessoa? Será o humano definível como se define um objecto técnico, uma peça de vestuário, um artigo ou instrumento? Os antigos diziam que a identidade pessoal é diferente da identidade natural ou técnica. Ser eu tem uma identidade no próprio, no mesmo, que me permite reconhecer ser eu próprio e não apenas a abstracção animal racional. Corpo Nem sempre o corpo foi compreendido em oposição à alma. Em Homero há duas palavras para dizer o corpo vivo e o corpo morto, como talvez possamos compreender que um cadáver é um corpo morto. O que qualifica a compreensão de um corpo morto, sem alma, abandonado pelo espírito? Como podemos compreender o corpo como um organismo que alberga aparelhos, que por sua vez, são feitos de órgãos, como compreender o corpo como mecânico e, por outro lado, como o horizonte no qual cada um de nós se encontra consigo, com a vida e com o mundo, com o mundo e a vida dos outros? Somos nós do tamanho da nossa altura ou do que vemos? Estamos nós apenas no interior das fronteiras do corpo ou estamos sempre fora de nós, a olhar já para as coisas como que a tocar-lhes e não para as lentes dos óculos ou de contacto nem para a superfície ocular para lá da qual começamos a ver? E quando adaptamos próteses, guiamos veículos, manobramos máquinas, usamos utensílios não estamos antes a intervir no próprio corpo como aquém e além de nós mesmos? Não nos apropriamos também como se fosse uma segunda natureza, um segundo corpo, de todos os instrumentos que nos permitem uma intervenção no mundo? E o corpo do outro é o que vejo apenas anatomicamente ou é de quem eu tenho medo e me terroriza ou o que me atrai no outro, que eu desejo, que eu amo? E o meu corpo para o outro sou eu reduzido de mim no que sou ou sou isso mesmo apenas, o meu corpo, veículo de terror e de desejo? Criação O sentido do ser na antiguidade era expresso pela natureza que faz nascer. Ela própria está continuamente em movimento criacionista e é a partir dela e para ela que tudo nasce e morre. A produção, poiêsis, o produzir, poiein, é a metáfora viva do ser. Criar é uma forma radical de ser, fazer existir, fazer ser. A obra de arte e a natureza interrogadas na sua origem têm uma concepção de criação. Criar é por um lado fazer artística, técnica ou profissionalmente algo, mesmo até na genética e na sua engenharia se podem criar seres humanos. Mas esta criação é feita a partir do que já existe. Não é formar é transformar. Não há criação a partir de nada, diziam os antigos: ex nihilo nihl fit. Mas não é a criação, pensada a partir do nada. Do nada que não existia, passa a existir, pelo menos, algo. Ainda assim, é da massa informe que surge a forma, do que estava mergulhado na noite do ser que passa a despontar o dia e todos os objectos que possam ganhar contornos e ser definidos, do caos que tudo engoliu de um só trago passa a haver o cosmos, a ordem que ordena e organiza intrinsecamente todas as coisas que são, porque age sobre si própria a partir do princípio formador das coisas que são. A criação é decalcada da conservação. A realidade é mantida, repetindo o que lhe esteve na origem, quando ainda não era nem nada de real ainda tinha passado a ser. Cidade É um dos lugares específicos em que o humano vive. É o seu sítio natural se não fosse aparentemente artificial relativamente à paisagem que achamos que encontramos no seu estado virgem: o campo, o interior e o litoral, as diversas morfologias geográficas são pensadas em contraposição à urbe. Como é uma cidade sem alcatrão, estradas, ruas, travessas, calçadas, avenidas? Como são as cidades de Portugal sem calçada portuguesa? Mas a cidade não é apenas a morfologia artificial que transforma a natureza. A polis era o próprio estado. Estruturalmente, cada ser humano era a cidade inteira, não apenas os seus contemporâneos, os seus concidadãos, mas os seus compatriotas das gerações passadas e vindouras. A cidade nasceu de uma aglomeração de seres humanos ou, antes, não será porque cada ser humano é já todos os outros humanos que se deu a conglomeração e o ajuntamento? E a comunidade complexa da comunidade ou da sociedade dos humanos que habitam o planeta terra não terão uma saudade da cidade de Deus ou daquela outra cidade que é um projecto e talvez uma construção do humano, mas que alberga o universal humano de que todos de nós, coletiva e individualmente, somos portadores?