Gillette

[dropcap]O[/dropcap] objecto de uso comum virou polémica. Os agentes de marketing da grande marca multinacional – que em português nem é nome de marca, mas do objecto cortante em si, -resolveram dar que falar ao criar um anúncio que põe a masculinidade em causa. Não é a masculinidade de todos, mas a de um tipo em especial: a masculinidade tóxica.

Mas a contestação da masculinidade tóxica já nos é bem conhecida. Por isso duvido que tenha sido com surpresa que a empresa tenha visto o anúncio – que só tenta mostrar a possibilidade de uma outra masculinidade – a agradar, mas também a consternar o público ao ponto dos fiéis clientes ameaçarem boicotar a marca. As pessoas ventilaram o seu desgosto nas redes sociais ao pegar nas suas amorosas histórias de como a gillette entrou nas suas vidas de puberdade, a quem crescem pêlos faciais para, com desgosto, excluir a gillette da masculinidade hegemónica e normativa. Eu percebo que a toxicidade de um conjunto de características que está ligada, muito na generalidade, à comunidade masculina seja vista como ofensiva. Mas melhor ou pior, eu até verti uma lágrima neste tão emocional anúncio que propõe que os homens podem chorar ou mostrar-se frágeis. E que acima de tudo podem estar à frente na mudança de perspectivas retrógradas do que o homem pode ser. Se já poucos concordam que o papel da mulher é na cozinha, também concordarão, certamente, que o homem não é sempre o bully, o forte e o responsável. A masculinidade não pressupõe que uma criança de 4 anos, ao ficar sem pai se julgue o ‘homem da família’ como já vi acontecer. De alguma forma, a discussão tem tomado formas bastante polarizadas, das quais já extensivamente reflecti neste espaço. Mas eu sou daquelas que não achou o anúncio da gillette particularmente ofensivo a quem quer que seja. Achei-o bonito e motivador e uma forma interessante de pôr na esfera pública os motivos e os desejos de mudança para uma masculinidade diferente.

Mas nem tudo são rosas, senhores e senhoras. A gillette não deixa de ser uma marca a trabalhar em função de lucros e publicidade gratuita. Por isso, não querendo soar demasiado desconfiada acerca das boas intenções de uma campanha tão emocional e actual – para além da intenção de doar milhões para organizações para causas que desconstroem a masculinidade tóxica – má publicidade, é sempre publicidade. Porque é bem verdade, e não querendo soar ingrata, que a gillette ao longo dos anos contribuiu com a obsessão da (ausência de) pilosidade feminina também. Há quem tenha realçado o papel determinante da publicidade da gillette para que as mulheres sentissem os seus pêlos como pouco higiénicos e não estéticos.

Para além de toda a polémica da ‘taxa rosa’ que faz com que as lâminas com uma capa rosa, i.e., para as mulheres, sejam mais caras do que a simples lâmina masculina. Moral da história: se a gillette quer mesmo puxar os limites do género teria que fazer alguma coisa para contrariar a tendência que é produzir lâminas (que têm exactamente o mesmo propósito!) de forma estereotipicamente distinta para o mercado feminino e masculino. Até pode começar com os seus anúncios, colocando mulheres com pêlos (de verdade) a serem rapadas – e não a patetice que é vermos mulheres de pele sedosa a passarem uma lâmina pelo desnecessário. Como vêem ainda há tanto que deve e pode ser feito, que nem um anúncio polémico vem resolver metade dos problemas que a gillette em si poderá produzir.

Só que as empresas são espertas. Hoje em dia o consumo vem agora pautado de preocupações ambientais, conceptuais e éticas e com ele vem o desejo que se produza algum tipo de mudança. Mas, parece-me, que esta lógica não deixa de ser a da atracção para o consumo. Podia ser pior, sempre se provoca alguma discussão. Agora… se produz mudança social de facto – isso é que já é outra história.

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