EntrevistaEva Koralnik conta como sobreviveu ao Holocausto Sofia Margarida Mota - 18 Jan 201928 Jan 2019 O fim do Holocausto assinala-se no próximo dia 27 de Janeiro. Eva Koralnik esteve ontem na Universidade de Macau para partilhar a sua história que, ao contrário de muitas, teve final feliz. Aos sete anos, altura em que começou o extermínio dos judeus que viviam na Hungria, conseguiu, com a mãe e a irmã recém-nascida, fugir para a Suíça. Com a memória ainda fresca, a sobrevivente conta como, de um dia para o outro, uma vida normal se transformou num pesadelo [dropcap]C[/dropcap]orpos enchiam as ruas da bela Budapeste”. É assim que Eva Koralnik recorda uma parte da sua infância no momento em que decorria o extermínio de judeus na Hungria, em 1944. Na altura tinha sete anos, mas a memória não lhe falha, até porque “foi um período muito intenso”. Filha de pai húngaro, Willi Rottenberg, e mãe suíça, Berta Passweg, Eva Koralnik nasceu na capital húngara em 1936. Durante esse período a lei suíça estava repleta de discriminações, uma delas viria a ser determinante para a história da família: uma mulher suíça que casasse com um estrangeiro perdia a nacionalidade. Um detalhe legal que se tornou fundamental quando a mãe de Eva se mudou para Budapeste, para seguir o negócio de família no sector dos têxteis, onde viria a conhecer e casar com um húngaro. Eva Koralnik foi a primeira filha, nascida num hospital que se tornou uma recordação maldita. “Quando os russos já estavam a libertar Budapeste, os nazis foram ao hospital e mataram toda a gente: enfermeiras, médicos, doentes, bebés”, apontou perante um auditório cheio de estudantes, na Universidade de Macau. No dia 19 de Março de 1944, o seu pai regressou do trabalho “com uma cara muito triste e disse só três palavras: eles estão aqui!”. Apesar de ter apenas sete anos, Eva Koralnik percebeu que algo terrível estaria a acontecer. FOTO: DR O objectivo das tropas era “matar o maior número de judeus, o mais depressa possível”. “A guerra estava quase no fim. Portanto, estavam com pressa”. Um imperativo fatal, a tempos agigantado pelo facto que “os nazis húngaros, por vezes, eram ainda mais cruéis que os alemães”, referiu. A Hungria, que tinha uma comunidade de cerca de 800 mil judeus, foi o último território a ser ocupado pelas tropas de Hitler. Entre Maio e Julho de 1944, foram executados mais de 450 mil judeus. Estrelas amarelas Assim que começou a ocupação foram aprovadas várias leis, “umas atrás das outras”, que limitaram severamente a vida dos judeus. “Primeiro, todos os judeus passaram a usar uma estrela amarela. A minha mãe coseu-me uma no casaco”, recorda. Além disso, “os judeus só podiam sair à rua duas horas por dia, durante a hora de almoço, quando as lojas estavam fechadas, não se podiam sentar em parques de jardim, não podiam usar eléctricos, à excepção da última carruagem”. A par das restrições reinava o medo. “Sabíamos que todos os camiões que ouvíamos passar levavam pessoas para uma estação ferroviária onde eram enfiadas em vagões com destino a Auschwitz e às câmaras de gás”, recorda. A palavra “selecção” ainda ecoa na memória de Eva Koralnik nos dias de hoje pelas razões mais funestas. “Quando as pessoas chegavam a Auschwitz, eram seleccionadas para dois destinos: uns iam directamente para as câmaras de gás, em especial mulheres, crianças e idosos e outros, enquanto os homens eram escolhidos para trabalhar”, explicou. À medida que os aliados se aproximavam de Budapeste, perto do final da guerra, os bombardeamentos tornaram-se um acontecimento diário. “Dormíamos vestidos porque a qualquer momento podiam soar as sirenes para irmos para a cave”, recorda. Nessa altura, já não havia carruagens para levar as pessoas para os campos de concentração e quem fosse encontrado pelos nazis, era atado, baleado e atirado para o Danúbio. “A minha tia, assim como centenas de outras pessoas, fizeram a chamada marcha da morte. Como já não havia forma de os transportar, estas pessoas andaram durante dias em direcção à Áustria. Quem colapsava era logo baleado”, recordou. Entretanto, a sua família foi separada quando o pai de Eva foi levado para um campo de trabalhos forçados. “Levaram todos os homens jovens, vestidos com uniforme e braçadeira que os identificava como judeus, para recuperar os caminhos de ferro dos comboios que levavam as pessoas para Auschwitz”, descreveu. Eva recorda ainda as palavras que ouviu mais tarde do pai sobre as mulheres que tentavam dar-lhes os seus bebés na esperança de que fossem salvos. Rumo à Suíça Ao mesmo tempo que o genocídio acontecia, centenas de pessoas juntavam-se em frente do consulado suíço, em Budapeste, para tentar arranjar um visto. O perigo da viagem não assustava quem preferia arriscar a travessia da Áustria, liderada pelos alemães, em busca de uma oportunidade de sobrevivência. Era neste consulado que trabalhava Harald Feller, um diplomata mais tarde reconhecido como um dos “justos entre as nações”, distinção dada àqueles, não judeus, que ajudavam as pessoas a fugir ao genocídio. Oskar Schindler e o português Aristides de Sousa Mendes são nomes que também figuram nessa lista. “O homem do consulado que nos salvou prometeu fazer o seu melhor para negociar com os alemães a passagem segura até à Suíça para a minha mãe e mais três senhoras. Como não sabia se as conseguiria encontrar no dia em que conseguisse o visto, arranjou um esconderijo para as três”. Foi nesse local, situado no centro de Budapeste que esperaram seis semanas e onde a irmã mais nova de Eva acabou por nascer. “A minha mãe tirou a minha estrela amarela e fingimos não ser judeus porque isso poderia custar-nos a vida. O certificado de nascimento da minha irmã até hoje diz Vera Rothenberg, religião protestante. Isso salvou-nos”, recordou. Os vistos chegaram no dia 2 de Outubro de 1944. Até à Suíça, mãe e filha tinham pela frente 800 quilómetros de terror. “As carruagens vinham cheias de soldados e a minha mãe tinha medo que eu falasse com eles e lhes dissesse que éramos judias. Estava num medo constante, com uma recém-nascida nos braços e sem comida”, apontou. Percalços pelo caminho Chegadas a Viena começaram os percalços. “Surgiram quatro agentes da Gestapo, perguntaram se vínhamos de Budapeste e disseram para irmos com eles”. O destino era o Hotel Metropole (sede da Gestapo), que tinha na cave uma autêntica câmara de horrores onde os presos eram torturados e mortos. No entanto, nessa noite esperava-as um autêntico milagre: 44 mulheres judias passaram a noite nesse hotel e saíram vivas. “Os documentos falsos valeram-nos um tratamento simpático. Lembro-me bem dos agentes da Gestapo, com as suas botas brilhantes e os pastores alemães na trela. Era muito assustador. Deram-nos quartos lindíssimos e alimentação. A minha mãe estava angustiada porque não sabia se a comida estava envenenada. Eu dormi muito bem, adorei o sítio, mas as mulheres não pararam de andar de um lado para o outro cheias de medo”, descreveu Eva. Na manhã seguinte, seguiram viagem. “Esperávamos chegar à Suíça nessa noite, mas isso não aconteceu. O comboio parou a 10 quilómetros da fronteira”. Mais uma vez, o receio de serem apanhadas e mandadas de volta instalou-se. “Muitas pessoas já ali tinham chegado antes para tentar passar a fronteira, mas acabaram por ser levadas para os campos de concentração”, disse. A noite acabou por ser passada na localidade de Feldkirach, onde contaram com a ajuda do chefe da estação. “O mestre da estação teve tanta pena de nós – devíamos ter uma aparência miserável, cansadas e esfomeadas – que nos trouxe chá e deixou-nos dormir em cima das mesas”. Na manhã seguinte conseguiram, finalmente, passar a fronteira. O início da vida na Suíça não foi fácil. A família juntou-se à avó. O pai de Eva acabou por sobreviver ao campo de trabalho, e dois anos depois conseguiu regressar à Suíça. “Não nos queriam dar o passaporte. Éramos identificados como apátridas, mas em 1960 conseguimos obter passaporte suíço”, recorda com alegria. Eva estudou e licenciou-se em tradução, curso que lhe abriria a porta para trabalhar num processo judicial histórico que encerrou um dos capítulos mais dramáticos da sua vida. Palavras com sentido A palavra holocausto não existia nessa altura, acrescentou Eva Koralnik. “Estávamos apenas a vive-lo, mas não existia um nome”. As palavras conhecidas, além de selecção, eram “câmaras de gás, extermínio e deportação”. O que existia, sublinha, era o medo. “Apenas vivíamos no medo diário e as nossas ocupações era encontrar comida e esconderijo”. Agora há um nome. Chama-se Holocausto e o seu fim é assinalado no próximo dia 27 de Janeiro. Mas as preocupações com o ressurgimento de movimentos de segregação racial não são exclusivo do passado. Esta Europa que agora se mostra cada vez mais virada para a extrema-direita é uma preocupação para quem passou por um dos lados mais escuros da história do velho continente. “Enche-me de medo que tenhamos esta tendência de viragem à extrema-direita por toda a Europa”, confessou a sobrevivente. Para Eva, o que se está a passar neste momento “não é uma acção contra os judeus, mas é dirigira a todos os estrangeiros”. “Isto é uma situação assustadora”, rematou referindo-se às conquistas de poder e de popularidade de Le Pen na França, Órban na Hungria, aos movimentos que ganham protagonismo na Polónia e em Itália. A única forma de fazer frente a esta situação, considera, é estudar história e saber o que a Europa passou de maneira a que não se repita. “Temos que estar muito atentos para que não se volte a repetir o que aconteceu no Holocausto”, sublinhou. O processo Eichmann Em 1961, durante o julgamento histórico, em Jerusalém, de Adolf Eichmann, conhecido como um dos “arquitectos” do Holocausto, Eva Koralnik trabalhou como tradutora na sala de imprensa do tribunal. “Foi um trabalho muito duro”, apontou enquanto recordava o momento em que traduzia as palavras do responsável pela deportação de milhões de judeus para campos de concentração. “Eichmann estava numa cela de vidro para que as pessoas não o matassem a tiro, ou tentassem agredi-lo, mas o pior era quando chamavam as testemunhas que tinham escapado dos campos, mas que tinham de ir a tribunal contar o que lhes tinha acontecido”, apontou. Tratavam-se de depoimentos de pessoas que viram os filhos serem assassinados. A determinada altura, o arguido tentou defender-se referindo que nunca havia visto sangue e que, como tal, estava inocente. “Não viu o sangue porque fez tudo a partir da secretária”, apontou Eva Koralnik. Adolf Eichmann foi condenado à morte por enforcamento.