Chen Kaige, realizador, presidente do júri do MIFF: “Sinto falta do tempo em que gostávamos uns dos outros”

“Farewell my Concubine” e “Life on a String”, realizados por Chen Kaige, foram filmes responsáveis pelos primeiros contactos do Ocidente com o cinema chinês. Aos jornalistas, o realizador, que esteve no território a presidir o júri da 3ª edição do Festival Internacional de Cinema, falou das transformações sociais da China que considera estarem a ser pagas com a perda de valores como a solidariedade e a confiança

 

Nos seus filmes aborda a história recente da China em “Farewell my Concubine” ou “Life on a String”, bem como as transformações sociais contemporâneas em “Caught in the Web”, ou mesmo a história antiga trazida por “Legend of the Demon Cat”. Que diferenças existem em fazer filmes que retratam dinastias, passam pela Revolução Cultural e abordam o mundo contemporâneo?

[dropcap]À[/dropcap]s vezes olho para a minha vida e sinto que, de certa forma, tem sido muito dramática. Posso dizer que não tive aquilo a que se chama de uma infância bonita. Naquela altura, a China era um país muito isolado, muito fechado ao mundo. Nós basicamente não sabíamos nada sobre o que se passava fora do país. Ainda não tinha 17 anos quando fui enviado para um campo de trabalho. Depois fui mandado para o exército, e daí para uma fábrica, numa província remota da China. Sentia muito a falta da minha família que estava em Pequim naquele momento. Tudo mudou com o começo da reforma económica. A China abriu as portas ao mundo. Houve uma espécie de revolução, devo dizer, mas agora uma revolução económica. Foi nesta altura que foi autorizado, novamente, o acesso à universidade. Entrei como estudante para a Beijing Film Academy e comecei a minha carreira. Devo dizer que nos últimos 40 anos há uma mudança incrível no país e que envolveu biliões de pessoas. Acho que meu destino também mudou. Nunca pensei que poderia ser realizador de cinema. Nunca pensei que tivesse a sorte de ter um prémio em Cannes. Acho que tudo isso foi um presente concedido pelo tempo. Mas, voltando à questão, prefiro fazer filmes contemporâneos e que se debrucem sobre as mudanças da China. Infelizmente não há muitos filmes que abordem ainda este aspecto. Por outro lado, uma das razões que me leva a olhar para trás através do cinema, é para aprender alguma coisa com o que se passou. Acho que tivemos que pagar um preço demasiado alto pelas mudanças que estão a acontecer no país. A China, o nosso comportamento, o relacionamento entre as pessoas e a estrutura da sociedade, tudo mudou completamente. Acabámos por perder muitas coisas que costumavam ser preciosas para nós. Na escuridão da história, podemos ver as coisas que têm sido perdidas e que na altura brilhavam. É por isso que gosto de voltar à história e trazer aqueles valores para o mundo actual, para mostrar o que tínhamos e o que perdemos.

Que tipo de coisas?

A sociedade vive agora em competição permanente. A relação entre as pessoas mudou. O outro é visto como um concorrente e não necessariamente como um amigo. Mas no passado sabíamos até como respeitar um concorrente. Quando era miúdo e morava em Pequim, as pessoas eram muito educadas e cordiais umas com as outras. Gostava muito disso. Pessoalmente, não me importo com o quão forte a sociedade possa ser, quão forte a nação possa ser. O que me importa, e o que também quero mostrar nos meus filmes, é como as pessoas podem ser boas umas com as outras. Sinto falta do tempo em que gostávamos uns dos outros.

Acha que seus filmes podem ajudar a trazer de volta esse tipo de relação?

A minha voz é muito fraca. A minha voz não é ouvida por milhões de pessoas. Talvez seja eu que esteja errado. De qualquer forma, tento dar uma energia positiva às pessoas, seja a partir da actualidade, seja através da história. Por outro lado, não espero que as pessoas gostem disso. O que me importa é que o possa fazer e que possa acreditar que é este tipo de sentimento humano que fez de mim um cineasta, desde o início.

Existe algum período específico na história da China que lhe interesse particularmente?

Passei seis anos a fazer o meu último filme – “Legend of the Demon Cat”. Parece muito comercial, mas tem um significado profundo. É sobre a dinastia Tang que, para mim, é a mais bela dinastia da história da China. Era uma dinastia muito aberta ao mundo e que aceitava pessoas de todo o lado: da Coreia, do Irão, da Ásia Central e talvez mesmo da Europa. Estava sediada na actual cidade de Xi´An. Quando estava a pesquisar nos registos históricos, constatei que talvez mais de quarenta mil estrangeiros também viviam ali e podiam mesmo tornar-se oficiais caso passassem nos exames. Houve muitos japoneses que, por isto, vieram a ocupar altos cargos no país. Era uma dinastia que se baseava na hospitalidade, na confiança. São bons exemplos para mostrar o que fomos naquela altura.

Foi com películas como o “Farewell my Concubine” que o Ocidente teve os primeiros contactos com o cinema chinês tendo-se rendido a muitos filmes assinados por si. O que acha que motivou este interesse pelo cinema da China?

Devo dizer que tive muita sorte por ter tido o tempo do meu lado. Naquela época, as pessoas do ocidente, incluindo os críticos de cinema, não sabiam mesmo nada sobre cinema chinês. Provavelmente nem sabiam que havia cinema feito na China. Talvez por isso, por existir esta novidade, a porta foi-nos logo aberta. Ainda me lembro de alguns críticos de cinema ocidentais nos visitarem em Hong Kong onde assistiram a “Yellow Earth”. Depois de verem o filme, vieram ter comigo para dizer que tinham gostado. Acho que este reconhecimento, não a mim pessoalmente, mas ao cinema chinês, é histórico.

Ainda assim os seus filmes ainda podem ser considerados uma excepção dentro do cinema que consegue entrar no mercado do ocidente. Na sua opinião porque é que há tantas dificuldades para o cinema chinês entrar nos outros mercados?

Alguns filmes como os meus ou os de Zhang Yimou podem ser considerados bem-sucedidos talvez porque existia uma certa curiosidade por um país ainda desconhecido. Não sei porquê, mas de facto o ocidente não presta muita atenção aos filmes da indústria chinesa que é cada vez maior. O que sinto é que também existe muita concorrência que acaba por pressionar os cineastas a optarem por filmes que ganhem dinheiro de forma a fazerem os investidores felizes. No meu caso, sempre continuei a dizer para mim próprio que queria continuar a ser eu nos filmes que fazia e faço. Caso contrário, um realizador perde-se e acaba por não conseguir fazer nada de bom. Penso que ainda existe um futuro no Ocidente para o cinema feito na China, mas não é hoje, não é agora. Vamos ver. Há sempre sonhadores e jovens cineastas que querem fazer trabalhos interessantes. Mas, como a situação e a competitividade são difíceis, acabam por optar por ganhar dinheiro. É muito complicado.

Acha que os actuais filmes chineses são muito comerciais?

Sim, muitos deles são muito comerciais. Eu não sou contra filmes comerciais. Há muitos que são significativos. Mas penso que devemos criar um ambiente em que os jovens realizadores se sintam confortáveis e que consigam, com os trabalhos que fazem, ter mais auto-confiança. É por isso que estou aqui.

Como definiria um filme?

Não quero dizer que os filmes são a minha vida. Eu não sei o que poderia fazer além de filmes. Não há mais nada que realmente me interesse. Não quero ser um bilionário ou ganhar mais fama. Por isso, para permanecer quem sou, pergunto-me repetidamente: se mudei nestes últimos 33 anos, para que possa perceber quem ainda sou.

É mais difícil agora fazer cinema acerca das mudanças actuais da sociedade chinesa?

Acho que os tempos mudaram e que os filmes são feitos numa altura que lhes é favorável. Não me surpreende que o “Farewell my Concubine” tenha sido feito nos anos 90 e acho que não poderia ser feito hoje. O tempo confere pontos de vista e perspectivas diferentes. As conexões são feitas consoante o tempo e é aí que sabemos como combiná-las para que funcionem. É difícil responder a essa questão, mas sou um optimista e tento olhar para o lado bom das coisas.

Lidou pessoalmente com a censura. Como é que vê este limite agora?

No passado, digamos há 25 anos, quando havia censura recebíamos apenas um pedaço de papel, agora recebemos um telefonema de uma autoridade a querer falar connosco acerca do filme. Isto significa que há a possibilidade de comunicação. As pessoas que estão no comando e os próprios cineastas têm um relacionamento melhor agora, do que tinham antes. Podemos conversar, podemos argumentar. Desta forma as pessoas podem perceber que não queremos fazer nada contra a sociedade.

Que projectos está a preparar agora?

Acho que vou fazer algo interessante, mas têm que esperar para ver. Será, definitivamente, um filme contemporâneo e joga com a harmonia por um lado, e por outro com o chicote. A sociedade é como um rio em que a água pode fluir e pode falhar. Estou a tentar encontrar a perspectiva. Não quero fazer qualquer julgamento. Na minha opinião não há pessoas boas e pessoas más. Só pessoas. É nisto que estou a trabalhar. Não posso dizer detalhes sobre a história, mas é sobre os dias de hoje.

Trabalhou como actor com Bernardo Bertolucci em “The Last Emperor”. Como foi?

Bernardo Bertolucci era um homem de verdade e foi também uma criança até morrer. Um homem com um grande sentido de humor e que estava sempre a sorrir. A primeira coisa que fez quando chegou a Pequim foi telefonar-me. Eu não era muito bom a falar inglês naquela altura. Convidou-me para jantar e disse que tinha um pequeno papel para mim no filme, para não me preocupar que qualquer um o poderia fazer. Eu perguntei porque me tinha escolhido a mim, ao que me respondeu que isso iria fazer a diferença e que queria que o meu rosto fosse visto. Tinha 33 anos, fiz isso por ele, e na cena acabei por cair do cavalo.

Quais são os seus filmes favoritos?

O meu filme favorito é o que ainda vou fazer. Isto é mesmo verdade. A esperança é sempre grande, enquanto a realidade é assim, pequena.

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