China / Ásia MancheteXinjiang | Human Rights Watch denuncia campanha repressiva de Pequim Andreia Sofia Silva - 11 Set 201811 Set 2018 O mais recente relatório da Human Rights Watch diz que a repressão contra os uigures, uma minoria étnica chinesa oriunda de Xinjiang, atingiu níveis nunca antes vistos. Detenções arbitrárias de pessoas que não têm sequer registo criminal, videovigilância em campos de reeducação política e estadia forçada na casa de pessoas, a fim de se espalhar a propaganda do Partido Comunista Chinês são referidos no relatório [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]organização não-governamental (ONG) Human Rights Watch denunciou ontem “a violação sistemática” dos direitos humanos da minoria étnica chinesa de origem muçulmana uigure, através de detenções arbitrárias, tortura ou vigilância permanente, na região de Xinjiang. Num relatório intitulado “Erradicar vírus ideológicos: a campanha repressiva da China contra muçulmanos em Xinjiang”, a organização de defesa dos direitos humanos descreve como Pequim converteu o extremo noroeste do país num estado policial, com milhares de uigures a serem arbitrariamente detidos em campos de doutrinação política. “O Governo chinês está a violar os direitos humanos em Xinjiang numa escala inédita no país nas últimas décadas”, acusa Sophie Richardson, directora para a China da HRW, no documento. Richardson considera ainda que a “campanha repressiva” da China é um “teste fundamental” à ONU e aos governos estrangeiros. A China tem negado sempre a existência de “centros de reeducação” ou de “detenção arbitrária”, e argumenta tratarem-se de “centros de educação vocacional”. Os internamentos são justificados pelas autoridades chinesas pela necessidade de ajudar “os que foram enganados pelo extremismo religioso (…) através do reassentamento e educação”. As autoridades chinesas insistem que são necessárias medidas duras para punir separatistas e extremistas religiosos na região, que concentra mais de 13 milhões de muçulmanos. Em 2009, a capital do Xinjiang, Urumqi, foi palco dos mais violentos conflitos étnicos registados nas últimas décadas na China, entre os uigures e a maioria han, predominante em cargos de poder político e empresarial regional. Desde então, as autoridades lançaram uma campanha repressiva, que foi reforçada a partir de 2016, quando o secretário do Partido Comunista Chinês (PCC), Chen Quanguo, foi transferido para a região, após vários anos no Tibete. De acordo com a HRW, centenas de milhares de uigures foram arbitrariamente detidos em campos de doutrinação política, onde são forçados a criticar o islão e a própria cultura, a aprender mandarim e a jurar lealdade ao PCC. O relatório baseia-se em entrevistas com 58 ex-residentes na região, incluindo antigos detidos e 38 familiares de detidos, e estima que um milhão de uigures continua detido nos campos, onde os que resistem ou falham “na aprendizagem” são punidos. Estes não têm direito a julgamento, nem acesso a advogados e familiares. As detenções podem ocorrer sob acusações como aceder a portais estrangeiros ou contactar familiares além-fronteiras, indica a ONG. Fora dos campos, os uigures em Xinjiang são igualmente submetidos a fortes restrições, que de “muitas formas” tornam as suas “vidas parecidas” com as dos detidos, acrescenta. A HRW descreve como uma combinação de medidas administrativas e postos de controlo restringem os movimentos dos membros da minoria étnica chinesa, que são também forçados a doutrinação política. “Através de níveis sem precedentes de controlo da prática religiosa, as autoridades efetivamente proibiram o islão na região”, refere a HRW. A organização descreve como as autoridades encorajam vizinhos a vigiarem-se uns aos outros e, através de sistemas de análise de dados, inteligência artificial ou controlo dos telemóveis, asseguram a monitorização constante da população. Um outra medida inclui impor às famílias uigures que recebam funcionários públicos em casa. “É evidente que a China não prevê custos políticos significativos com a sua campanha abusiva em Xinjiang, em parte devido à influência que tem no sistema da ONU”, nota a HRW. A organização defende que perante a evidência de violações graves em Xinjiang, os governos estrangeiros devem adoptar acções unilaterais e multilaterais. Controlo dentro e fora A HRW revela casos específicos contados por pessoas sujeitas a vários tipos de repressão e que não quiseram dar a cara em nome da sua segurança pessoal. Todos os nomes surgem como pseudónimos. Rustam, que passou vários meses em campos de reeducação política, falou à organização em Maio deste ano. “Ninguém se pode mover porque somos observados através de câmaras de videovigilância, e depois, ao fim de um tempo, ouvimos uma voz num altifalante que nos diz que podemos relaxar durante alguns minutos. Essa voz também nos diz quando nos podemos mexer. Somos observados até mesmo quando vamos à casa de banho. No campo de reeducação política, estamos sempre sob stress”, contou. Nur, que foi entrevistado pela HRW em Março deste ano, recordou as dificuldades por que passou ao ser colocado numa pequena cela. “Resisti às medidas que me impuseram. Colocaram-me numa cela solitária bastante pequena, num espaço de 2×2 metros sem me darem água ou comida. Tinha as mãos atadas atrás das costas e fiquei assim durante 24 horas sem poder dormir.” Mesmo aqueles que não são detidos pelas autoridades enfrentam diariamente um forte controlo policial nas principais cidades da província. “Um total de cinco polícias revezaram-se para me vigiar em casa. Tinham de documentar tudo o que viam e as fotos mostram-nos a ler documentos de propaganda política comigo ou mostram-me a mim a preparar a cama ou o sofá para que eles pudessem passar a noite em minha casa”, referiu Aynur, uma mulher que deixou Xinjiang em Maio deste ano. Outro relato de oficiais presentes nas casas particulares das pessoas é feito por Ainagul, de 52 anos, que saiu da província o ano passado, tendo o seu filho ficado num campo de reeducação política. “Desde meados de 2017, cerca de duas vezes por semanas, os polícias vinham, e no caso de algumas pessoas até passavam a noite nas suas casas. Os polícias falaram com o meu filho, os meus netos, tiraram-nos fotografias, sentaram-se na mesa e perguntaram onde é que estava o meu marido, onde é que ele tinha ido. Estava mesmo assustada e fingi estar ocupada a tomar conta dos meus netos. Estava preocupada porque, se falasse, poderia dizer que o meu marido já tinha ido embora [para o estrangeiro]. Então decidi ficar calada.” Além do controlo que é feito dentro de fronteiras, quem é natural de Xinjiang afirma sentir-se perseguido fora da China. “Eles dão sinais de que mesmo que vivas num país estrangeiro podem ‘coordenar-te’. Estou assustado. Não aderi a nenhuma organização ou movimento terrorista contra a China. Não aderi a nenhum tipo de demonstrações públicas. Não exibi a bandeira do Turquestão. Não tenho qualquer registo criminal na China. Porque estão a fazer este tipo de coisas?”, questionou Murat, estudante de 37 anos, que vive fora do país e cuja irmã está actualmente num campo de reeducação política. Maya Wang, investigadora sénior da HRW:“Governo não nos dá acesso à região” O que está a acontecer em Xinjiang? O Governo chinês está a levar a cabo uma campanha de repressão a larga escala contra os turcos muçulmanos, que são, na sua maioria, uigures e cazaques. As autoridades estabeleceram vários campos de reeducação política na província. Além de terem de aprender canções de propaganda e aprender mandarim, que não é a sua língua mãe, os turcos muçulmanos estão proibidos de dizer ‘As-Salaam-Alaikum’ [uma saudação muçulmana que significa ‘que a paz esteja convosco’] e devem antes dizer olá em mandarim. Se resistirem, ou se os oficiais acharem que estão a falhar nas suas lições, são punidos. Podem ser sujeitos a detenções em celas solitárias, serem proibidos de comer por um certo período de tempo ou ficar de pé durante períodos de 24 horas, entre outras punições. Os campos de reeducação política são apenas uma parte da repressão. Os turcos muçulmanos também são mantidos em centros de detenção e prisões. Os dados oficiais sugerem que as detenções formais triplicaram em Xinjiang nos últimos cinco anos. A repressão também tem um impacto fora da China, pois muitos uigures e cazaques vivem no estrangeiro, e a repressão tem vindo a separar muitas famílias. Alguns membros de uma família são mantidos em Xinjiang e não podem sair porque as autoridades confiscam os seus passaportes, ou são detidos enquanto os restantes membros da família continuam fora da China. A comunicação entre eles não é permitida. Porque é que os turcos muçulmanos são enviados para os campos? As autoridades chinesas têm dado atenção às pessoas com ligações a uma lista de “26 países sensíveis”, incluindo o Cazaquistão, Turquia e Indonésia. A título de exemplo, alguém que tenha visitado a Turquia durante duas semanas pode ficar marcado. Também têm debaixo de olho pessoas que comunicaram com o estrangeiro através de aplicações como o Whatsapp. Outros foram enviados para os campos de reeducação política por usarem barba, uma vez que o cabelo facial foi proibido. Mas não há uma justificação legal para estes campos e não houve qualquer tipo de acusação ou sentença. Os detidos podem passar vários meses nestes campos. Como é que esta investigação foi elaborada? Entrevistamos 58 pessoas, e cinco delas tinham estado detidas em campos de reeducação política ou centros. Mais de uma dezena deixou Xinjiang depois de Janeiro de 2017, o que significa que passaram pela repressão sob liderança do secretário do PCC em Xinjiang, Chen Quanguo. Outros têm membros da família presos e não podem sair do país porque têm os seus passaportes confiscados. Só falamos com pessoas que deixaram Xinjiang porque não queremos pôr em perigo as pessoas que continuam na região autónoma. O Governo chinês não permite o nosso acesso à região e tentar fazer entrevistas colocaria as pessoas em risco. Também analisamos muitos documentos oficiais e relatórios.