Perspectivas VozesA era digital Jorge Rodrigues Simão - 20 Jul 2018 “We’re moving to this integration of biomedicine, information technology, wireless and mobile now – an era of digital medicine. Even my stethoscope is now digital. And of course, there’s an app for that.” The Future of Medicine, Where Can Technology Take Us? Daniel Kraft [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m uma cena famosa do filme de 1967, “A Primeira Noite”, um amigo da família deixa de lado o personagem de Dustin Hoffman, Benjamin Braddock, e sussurra em tom conspiratório que existe um grande futuro nos plásticos. Se o filme tivesse sido realizado em outra época, o conselho ao jovem Braddock poderia ser diferente, e ter sido aconselhado a envolver-se em caminhos-de-ferro, negócios com electrónica ou simplesmente a ir para o Oeste, pois todas as idades têm situações que parecem novas e maravilhosas na época, mas frouxas e banais para as gerações futuras. A tecnologia digital é a última moda porque, depois de décadas de desenvolvimento, tornou-se incrivelmente útil. Ainda assim, quem observe melhor, poderá ver os contornos da sua inevitável descida ao mundano. As pessoas precisam de começar a preparar-se para uma nova era de inovação em que diferentes tecnologias, como a genómica, ciência dos materiais e a robótica, se destacam e para entender o que está a acontecer, é necessário observar as tecnologias anteriores. A ascensão da electricidade, por exemplo, começou no início da década de 1830, quando Michael Faraday inventou o dínamo eléctrico e o motor. Ainda assim, só cinquenta anos depois, Edison abriu a sua primeira fábrica e quarenta anos passados, durante a década de 1920, a electricidade começou a ter um impacto mensurável na produtividade. Toda a tecnologia segue um caminho semelhante de descoberta, engenharia e transformação. No caso da electricidade, Faraday descobriu novos princípios, mas ninguém realmente sabia como torná-los úteis, dado que primeiro tinham que ser entendidos suficientemente bem, para que pessoas como Edison, Westinghouse e Tesla, pudessem descobrir como fazer produtos que as pessoas estariam dispostas a comprar. Todavia, realizar uma verdadeira transformação exige mais do que uma única tecnologia, pois as pessoas precisam de mudar os seus hábitos, e então as inovações secundárias necessitam de entrar em jogo. É de considerar que para a electricidade, as fábricas precisavam de ser redesenhadas e o trabalho tinha que ser re-imaginado, antes de começar a ter um impacto económico real, e os electrodomésticos, radiocomunicações e outros produtos mudaram a vida conforme a conhecíamos, o que levou algumas décadas. O nosso mundo foi completamente transformado pela tecnologia digital. Seria difícil explicar a alguém que olhava para um computador de grande porte da IBM nos anos 1960, que algum dia máquinas semelhantes substituiriam livros e jornais, nos dariam recomendações sobre onde comer e instruções sobre como lá chegar, e até mesmo falar connosco, mas actualmente tais aplicações fazem parte dos nossos hábitos quotidianos. É de considerar que ainda hoje existem várias razões para acreditar que o crepúsculo da era digital paira sobre nós, o que não significa qualquer tipo de argumentação de que deixaremos de usar a tecnologia digital, pois afinal, ainda usamos a indústria pesada, não significando que ainda estamos na “Era Industrial”. Existem três razões principais para mencionar que a era digital está a terminar, sendo a primeira a tecnologia em si. O que impulsionou todo o entusiasmo com os computadores foi a nossa capacidade de colocar cada vez mais transístores em uma placa de silício, um fenómeno que conhecemos como Lei de Moore, e que permitiu tornar a nossa tecnologia exponencialmente mais poderosa, anualmente. A Lei de Moore está a terminar a sua aplicação. As empresas como a “Microsoft” e a “Google” estão a projectar circuitos integrados personalizados para executar os seus algoritmos, porque não é mais possível esperar por uma nova geração de circuitos integrados e para maximizar o desempenho. É preciso cada vez mais optimizar a tecnologia para uma tarefa específica. Deve-se considerar, em segundo lugar, que a habilidade técnica necessária para criar tecnologia digital diminuiu drasticamente, marcada pela crescente popularidade das chamadas plataformas sem código. Assim como os mecânicos e electricistas, a capacidade de trabalhar com a tecnologia digital está a tornar-se cada vez mais uma habilidade de nível médio e com a democratização, vem a comoditização que é o processo de transformação de bens e serviços (ou coisas que podem não ser normalmente percebidos como bens e serviços) em uma mercadoria. Os aplicativos digitais, finalmente, estão a tornar-se bastante evoluídos. Se comprarmos um computador portátil ou um telemóvel praticamente faz as mesmas coisas que o comprado há cinco anos. As novas tecnologias, como os alto-falantes inteligentes sem fios com comando de voz, como o “Amazon Echo” e o “Google Home”, que adicionaram a conveniência das “interfaces” de voz, mas pouco mais. Ainda que haja um valor novo limitado a ser aproveitado em objectos como processadores de texto e aplicativos de telemóvel, existe um extraordinário valor a ser libertado na aplicação de tecnologia digital a campos como a genómica e ciência dos materiais, para alimentar indústrias tradicionais como a fabricação, energia e medicina. O desafio essencial é aprender como usar “bits” para direccionar átomos. É fácil entender o seu funcionamento observando no “Atlas do Genoma do Cancro (TCGA na sigla na língua inglesa)”, que é um projecto iniciado em 2005 e supervisionado pelo “National Institute of Health (NIH)” e o “National Human Genome Research Institute (NHGRI)”, ambos dos Estados Unidos, que visam a catalogação de alterações moleculares responsáveis pelo aparecimento da importância biológica do cancro utilizando a sequenciação do genoma e a geoinformática. A sua missão era simplesmente sequenciar genomas de tumores e colocá-los “online” e até ao momento, catalogou mais de dez mil genomas em mais de trinta tipos de cancro e libertou um dilúvio de inovações na ciência do cancro e também, ajudou a inspirar um programa similar para materiais chamado de “Iniciativa do Genoma Material (GMI na sigla em língua inglesa)” que vem na sequência do “Projecto Genoma Humano (HGP na sigla em língua inglesa)”, que é um programa internacional de pesquisa colaborativa para sequenciar e entender todos os genes dos seres humanos. A HPG foi declarada completa em Abril de 2003 e deu-nos a incrível capacidade de ler o mapa genético completo do ser humano, tendo iniciado uma nova era da medicina molecular. O GMI é uma iniciativa relativamente nova destinada a desenvolver políticas, recursos e infra-estrutura para apoiar a descoberta e o fabrico de materiais funcionais a um ritmo acelerado, e com custos substancialmente reduzidos. Qual a razão de se referir à iniciativa como um projecto “genoma”? É mais como uma metáfora do que uma analogia directa com o mapa do ADN humano, e deve ser interpretado como sendo um componente crítico da descoberta, desenho e manufactura moderna de materiais que envolvem a integração de uma grande quantidade de dados com origens diversas, desde caracterizações experimentais e análise computacional até experiências em condições realistas. A forma de recolher, organizar, distribuir e usar esses dados com eficiência é um desafio significativo, semelhante ao enfrentado pelo HPG no seu esforço que durou quinze anos. Além disso, os pesquisadores esperam que o impacto a longo prazo do GMI nas investigações de materiais, seja igual ao impacto do HPG na pesquisa biomédica. O GMI foi lançado em 2011 pelo governo americano e envolve várias agências federais, como os Departamentos de Defesa e de Energia, Fundação Nacional de Ciência, Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço (NASA na sigla em língua inglesa), Instituto Nacional de Normas e Tecnologia (NIST na sigla em língua inglesa), e muito outros. Quanto ao GMI, os esforços estão a aumentar muito a capacidade de inovar, sendo de considerar o esforço para desenvolver químicas avançadas de baterias para impulsionar a economia de energia limpa, o que requer a descoberta de materiais que ainda não existem. É de entender, que historicamente, tal envolveria o teste de centenas ou milhares de moléculas, mas os pesquisadores puderam aplicar super computadores de alto desempenho, para executar simulações em genomas de materiais e reduzir muito as possibilidades. É de acreditar que durante a próxima década, essas técnicas incorporarão cada vez mais algoritmos de aprendizagem da máquina, bem como novas arquitecturas de computação, como a quântica e os “chips” neuromórficos, que funcionam de forma muito diferente dos computadores digitais. As possibilidades desta nova era de inovação são profundamente impressionantes. A revolução digital, apesar de todos os seus encantos, teve um impacto económico bastante limitado, em comparação com tecnologias anteriores, como a electricidade e o motor de combustão interna. As tecnologias da informação, mesmo actualmente, representam apenas cerca de 6 por cento do PIB nas economias avançadas. Se compararmos com a manufactura, saúde e energias, que compõem 17 por cento, 10 por cento e 8 por cento do PIB global, respectivamente, pode-se ver como existe muito mais potencial para causar impacto além do mundo digital. Todavia, para capturar esse valor, é preciso repensar a inovação para o nosso século. A tecnologia digital, velocidade e agilidade são os principais atributos competitivos. As técnicas como prototipagem rápida e interacção, aceleraram o desenvolvimento e muitas vezes melhoraram a qualidade, porque se deve entender muito bem as tecnologias subjacentes. As três grandes tecnologias para a próxima década serão a genómica, nanotecnologia e robótica. A tecnologia está a mudar o mundo e o economista americano, Robert Gordon, no seu último livro “The Rise and Fall of American Growth: The U.S. Standard of Living since the Civil War”, afirma o oposto e aponta com precisão que a produtividade, que surgiu entre 1920 e 1970, parou desde então, e é provável que assim continue e argumenta, que as tecnologias anteriores, como a electricidade, motor de combustão interna e os antibióticos, tiveram efeitos muito variados, enquanto a tecnologia digital é relativamente diminuta em comparação. É um argumento sério e que pode estar certo, mas não leva em conta outros efeitos importantes. O cientista americano da computação e inventor, Ray Kurzweil, no seu livro “The Singularity Is Near : When Humans Transcend Biology”, declara que o ponto final da tecnologia digital não são os melhores dispositivos e aplicativos, mas as novas tecnologias, como a genómica, nanotecnologia e robótica que estão apenas a começar a ter um impacto, mas na próxima década vão determinar se Robert Gordon está certo ou não. Os engenheiros de “Sillicon Valley” são famosos pelas suas habilidades com códigos de computador. Todavia, o avanço exponencial do poder de computação permitiu que os cientistas começassem a desvendar os mistérios de um enigma ainda mais importante, o código genético e o novo campo da genómica. A primeira área em que está a causar impacto é o cancro. O mapeamento do genoma do cancro está a possibilitar novas terapias, mais direccionadas, que tratam pacientes com base na composição genética do cancro, e não apenas na localização do tumor, como na próstata ou na mama, que combinado com novas imunoterapias, está a dar esperança de que a cura para o cancro pode em breve ser uma realidade. A nova técnica denominada de “Repetições Palindrómicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçada (CRISPR na sigla em língua inglesa)”, permite que os cientistas editem sequências de ADN para, por exemplo, desabilitar genes-chave de um vírus HIV, desactivar outras doenças auto-imunes como a “Esclerose Múltipla” ou reprogramar o ADN de levedura para criar petroquímicos como plásticos. A genómica ainda é uma ciência muito jovem, com pouco mais de uma década de existência, e está apenas a começar a arranhar a superfície, mas as primeiras indicações são de que mudará as concepções sobre o que é possível. Os antibióticos foram verdadeiramente transformadores, mas o seu efeito limitou-se a doenças infecciosas. A genómica tem o potencial de ir muito além. Apenas alguns dias após o Natal de 1959, Richard Feynman subiu ao pódio na reunião anual da “American Physical Society” para dar uma palestra intitulada “Há muito espaço no fundo” e em uma hora falando ao nível do ensino médio, criou uma nova ciência, denominada de nanotecnologia que está a trazer uma ampla gama de novos materiais físicos, como os “pontos quânticos (QD na sigla em língua inglesa)”, que estão a revolucionar os dispositivos electrónicos, de computadores mais eficientes a televisões mais baratas e nítidas. O grafeno, é outro material de nanotecnologia, que pode ser usado para fazer uma ampla variedade de produtos, desde próteses super-fortes, mas incrivelmente leves, até fios supercondutores. A fim de entender o incrível impacto da nanotecnologia, é preciso analisar apenas uma área, a das células solares. Enquanto a energia solar está a lutar para ser viável, no futuro a nossa energia pode custar cerca de metade do preço actual em dez anos, e apenas um quinto em vinte anos. Devemos considerar que a energia representa cerca de 8 por cento do PIB, e que tem o potencial de causar um grande impacto na produtividade. Durante a maior parte da história, tivemos que nos conformar com os materiais que a natureza nos deu, mas estamos prestes a projectar materiais com as propriedades que desejamos. A genómica, nanotecnologias como pontos quânticos e grafeno só se tornaram viáveis recentemente, não sendo possível prever o que o futuro reserva. Os primeiros robôs industriais atingiram a linha de montagem em uma fábrica da General Motors, em 1961, realizando tarefas como soldagem de corpos e nas décadas que se seguiram, os robôs fizeram uma parte crescente do trabalho de fábrica, mas sempre sós, sendo muito perigosos para rodear as pessoas. As primeiras ATMs foram instalados, em 1969, e os robôs começaram a substituir trabalhadores administrativos em vez de operários e estamos a ver cada vez mais robôs ao nosso redor. O “Da Baxter”, é um robô barato para as pequenas empresas comprarem e seguro para colaborar com trabalhadores. Os robôs “Roomba” podem aspirar de forma inteligente os pisos das casas e os robôs de software que automatizam o planeamento de viagens tornaram-se essenciais à vida. O campo militar é o local privilegiado para entender o futuro da robótica, na qual os Estados Unidos investiram milhares de milhões de dólares, usando onze mil drones e doze mil robôs terrestres para realizar trabalhos como a remoção de bombas e o transporte de equipamentos. Os militares estão a estabelecer vínculos emocionais com os robôs, dando-lhes nomes e arriscando as suas vidas para os salvar, mas também vemos robôs a tornarem-se cada vez mais integrados na vida civil. Os drones estão a ser implantados comercialmente para pesquisar cultivos e a “Amazon” está a planear lançar um serviço de entrega por drones . O “Watson” da IBM está a ajudar médicos a diagnosticar pacientes. À medida que a tecnologia avança, os robôs substituirão cada vez mais os seres humanos como conduzir camiões. Robert Gordon teve um pensamento correcto e excepto por um período relativamente breve no final da década de 1990, vimos pouco benefício mensurável da tecnologia digital. O impacto, certamente nada tem a ver com inovações anteriores, como a electricidade, antibióticos ou motor de combustão interna. Todavia, talvez esteja a ser um pouco rápido para julgar. Faraday inventou o dínamo eléctrico e o motor de combustão interna foi desenvolvido na década de 1870. Ainda assim, o maior impacto ocorreu entre 1920 e 1970. Nesse intervalo de tempo, outras tecnologias, como a direcção, freios, estradas, electrodomésticos e computadores precisavam de ser desenvolvidos. A inovação nunca é um evento único pois requer a descoberta de novos “insights”, engenharia de soluções à volta deles e, em seguida, a transformação de uma indústria. A tecnologia não produz progresso por si, sendo preciso encontrar problemas importantes para resolver e, então, mudar a forma como se trabalha para retirar vantagens. Assim, enquanto os aplicativos de telemóveis adicionam conveniência às nossas vidas, o real impacto da tecnologia digital está à nossa frente, quando tecnologias de segunda ordem são aplicadas a problemas completamente novos. As tecnologias emergentes que estão a surgir, não se criam com a frequência desejada, não sendo possível prototipar rapidamente um computador quântico, uma cura para o cancro ou um material não descoberto. É de atender que existem sérios problemas éticos que envolvem tecnologias como a genómica e inteligência artificial, pois passámos as últimas décadas a aprender e a andar rápido, mas nas próximas décadas, teremos que reaprender a caminhar novamente devagar. Assim, enquanto os “mantras” para a era digital foram a agilidade e ruptura, para esta nova era de exploração e descoberta de inovação, mais uma vez se tornarão proeminentes. É hora de pensar menos sobre “hackaton” e mais sobre como enfrentar os grandes desafios.